Os ventos vindos da América Latina e dos anos sessenta e setenta da Teologia da Libertação, parecem estar a pairar numa pequena paróquia duma zona periférica de Madrid. À primeira vista, ao entrar na Igreja de São Carlos B, ficamos com a ideia de que estamos num ambiente tipicamente da Esquerda Selvagem, onde a vontade de liberdade e de igualdade irrompe com o conceito natural dos limites e da definição dos padrões da ortodoxia religiosa e do culto de um Deus pessoal.
À medida que se vai inteirando do espaço, do ambiente, dos olhares estranhos que se cruzam e se familiarizam com uma vontade estranha e louca de viver Deus, aqui e agora, este Deus deixa de ser um Ser que se apresenta como promessa e passa a ser vivido e sentido como uma espécie de força da natureza que actua no amor concreto, já outrora anunciado por Cristo. O celebrante, como um conferencista pedagogo vai ouvindo e dialogando com todos os participantes na assembleia litúrgica. Uma liturgia muito estranha para ser enquadrada no cânon cristão, mas, nem por isso, menos ortodoxa que aquelas que se querem cristãs e católicas, uma vez que a liturgia é, antes de tudo, a harmonia do culto seja ele político, social ou religioso.
A alegria que se fazia ver no rosto dos participantes permite ler que havia uma tensão entre um Deus que se quer local (numen locale) e um Deus que se quer, e se sente, pessoal e limitador do espírito criativo da necessidade que o crente sente em viver a sua fé (numen personale), visto que no plano espacial, o espírito se sente ilimitado e prefere voltar sempre àquele mesmo sítio para fazer a sua verdadeira adoração sem constrangimento e sem um engaiolamento do dogma do Credo. O pano de fundo parece ser a urgente transformação dentro da Igreja a partir de uma maior criatividade e de uma aproximação real aos mais necessitados.
Muitos nomes sonantes da Teologia, outrora dita de Libertação e substituída hoje por uma Teologia da marginalização, já passaram pela paróquia de São Carlos Borormeo para manifestar a solidariedade e proporcionar jornadas teológicas; entre eles destacam-se, o brasileiro Leonardo Boff um dos expoentes máximo da Teologia da Libertação, sendo que também se pode contar nomes de intelectuais espanhóis como Enrique de Castro, autor do livro cujo título este artigo se apropriou, assim como Enrique Martinez Reguera com quem tive a oportunidade de falar e de trocar livros e correspondência.
Em Madrid, Deus está a ser ateu, como Cristo o fora no seu tempo, por se juntar aos mais pequeninos e distanciar-se do cânon religioso e social. Porém, apesar da pressão que se pode sentir nos responsáveis da paróquia, a verdade é que o pedaço de Deus que trazem consigo, como diz uma alma pura espanhola, é mais contagiante do que parece, é um regresso à vida dos “cristofores” dos primeiros séculos do cristianismo.
Ps: Artigo escrito para a revista "Prestígio" do mês de Novembro