Contrariamente às outras colónias africanas, as colónias da expressão portuguesa não conheceram directamente o impacto da influência do problema alemão. Este alheamento tem a ver com o facto de Portugal, país colonizador, não ter participado directamente nem na primeira nem na segunda grande guerra mundial. Aliás, este facto vai retardar comparativamente aos países francófonos e anglófonos a consciência política no espaço lusófono africano.
De facto, se nas outras colónias africanas de expressão inglesa e francesa, os africanos começaram a desconfiar da superioridade moral, humana e política dos europeus por causa do que viveram directamente em confronto e em contacto com os europeus que eram mortos pelos seus irmãos europeus, as colónias da língua portuguesa estavam à “margem” de toda esta experiência que iria ter um levantamento político importante no continente africano.
Os africanos colonizados já vinham sentindo há muito que o branco colonizador não podia ser um ser tão perfeito como eles pensavam. Um ser que em algumas situações só estava um pouco abaixo de deus e em outras, assimilava-se a essência da perfeição de um deus. Esta desconfiança da perfeição do branco já vinha fazendo o caminho sobretudo na revolta e na impotência dos chefes tradicionais. O protagonismo que lhes foi retirado pela intrusão da colonização, foi gerando neles a dicotomia do desespero e do desgaste da concepção do poder absoluto que queriam ter. Com efeito, o branco depois de ter sido visto com medo, fascínio e admiração, passou a ser alvo de uma presença repugnante; só que este repudio tinha que ser um repudio cauteloso, uma vez que o colonizador tinha em tudo meios muito mais eficiente de que o colonizado. Esta limitação dos meios pela parte dos colonizados construiu-se a partir de uma dicotomia que balançava entre à obediência induzida pela colaboração e o ódio que eles tinham a esta mesma obediência.
Não tendo outra alternativa para salvaguardar os seus poderes, os chefes tradicionais foram obrigados a colaborar e a obedecer o poder colonial. Esta colaboração permitia-lhes em parte ter estatutos de amigos do colonizador ainda que esta amizade lhes retirasse a primazia do poder. A colaboração era também uma maneira de eles encontrarem no colonizador um aliado para indomar os seus adversários. Acontece porém, que muito cedo descobrem que em muitos dos casos, os ditos adversários beneficiavam da mesma regalia que eles junto do colonizador. Esta ambiguidade do colonizador começou a suscitar cada vez mais o ódio e a desconfiança. Assim, quanto mais se intensificava a colaboração, mais esta intensificação fazia crescer o ódio milimetricamente calculado para derrubar o poder colonizador.
O regresso dos africanos que estiveram a combater ao lado dos europeus particularmente na segunda grande guerra e o interesse da URSS na autodeterminação dos povos sob o jugo colonial[1] vai mudar tudo. A experiência em terras europeias começou a servir de base para desmistificar a teia do sagrado que o homem africano tinha para com o homem branco. Agora, nem a moral e muito menos a política podia justificar aquilo que os africanos viram e viveram em solos europeus ou em Indochina. A inacção africana cunhada fortemente pelos diversos catecismos religiosos, particularmente o da Igreja Católica, não podia deixar de ser questionada. Surge assim na alma do intelectual africano uma espécie de paradoxo da verdade cristã, ou melhor, da verdade do cristianismo, seja ela protestante ou católico.
No meio do problema alemão, três notas merecem destaque no que diz respeito ao choque que os africanos tiveram quer em relação ao cristianismo na Europa quer em relação à própria relação social entre as pessoas na Europa. Entre os 10 Mandamentos que os africanos tinham aprendido na catequese, viram três destes 10 Mandamentos desrespeitados profundamente na Europa. Se os militares africanos cristãos questionavam o desrespeito puramente num plano religioso no âmbito da visão cristã que naquela época era de um Deus castigador e vingador, os outros africanos não cristãos, questionavam num plano cultural (ligado à tradição africana) e ético. Como é possível que isto acontece com pessoas civilizadas e cristãs? Gente que nos ensina a conhecer um Deus justo e bom, um Deus que quer que os homens sejam irmãos e que os torna imortais? Estas perguntas feitas pelos africanos antagónicos quer a nível da religião quer a nível da moral, recaíam sobretudo em três dos 10 Mandamentos, concretamente: o quarto, o quinto e o oitavo Mandamento.
Honrar pai e mãe, não matarás e não levantarás falso testemunho.
A barbaridade cometida contra o quarto, o quinto e o oitavo mandamento chocou muito aos africanos. Com efeito, havia uma recomendação de Jesus Cristo muito cara aos missionários em África, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esta ruptura moral com a lei de Talião e o seguidismo moseista, foi o grande cavalo de batalha dos missionários. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é uma extensão da lei dada por Moisés mas é também o resumo da fraternidade querida por Deus e nas palavras de Jesus Cristo, esta recomendação é de uma elevação enorme, uma vez que ela incarna a ideia do maior de todos os mandamentos. Se em África esta fraternidade universal anunciada pelo cristianismo não era propriamente uma novidade, nem por isso deixava de ser uma contradição essencial, uma vez que o poder politico colonial fundia-se com o poder religioso ao ponto de chegar a colocar em conflito tribo contra tribo, região contra região. Porém, é a guerra mundial que vai permitir ainda mais aos africanos de ver esta contradição essencial. Ao verem desusada a recomendação “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, viram consequentemente desinformado o quarto, o quinto e o oitavo mandamento. Quem não respeita o seu próximo como a si mesmo, não pode deixar de caluniá-lo e por conseguinte de matá-lo. Agora a questão é: se tudo isso é verdade, ou seja, se o cristianismo é verdade, porque é que eles não o vivem? Estes desvios morais e políticos daquilo que era a grandeza Ocidental em África colonizada vai fazer com que os africanos pusessem duramente em causa a moral e a autenticidade do desejo do Deus cristão do Ocidente e será também o desvio destes mandamentos e da insustentabilidade politica e moral em África colonial que vão constituir o alicerce do debate da segunda fase da questão alemã em África. O débâcle do poder colonial em África tem as suas origens sobre tudo na perda da autoridade religiosa, isto é, na desconfiança da ideia e do desejo do Deus universal, o Deus que canta e fala a língua judaico-cristã, já que no plano político a autoridade consistia simplesmente no desequilíbrio das forças, entre o colonizado e colonizador.
É a morte da religião cristã e a sua desilusão que vai causar a grande reviravolta da concepção que as colónias tinham para com os colonizadores. Os pais das independências africanas souberam explorar aquilo que Hannah Arendt considera ser um “erro das correntes autoritárias do pensamento político crerem que a autoridade pode sobreviver ao declínio da religião institucional e à ruptura com a continuidade da tradição…. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começam a vacilar”[2].
Nesta perspectiva, também se coloca a questão da interpretação da Profissão de fé cristã pelos africanos. Impunha-se a razão saber se a Profissão de fé cristã devia ser entendida como uma opinião ou como uma decisão existencial. “Jave, teu Deus, é um Deus único” que não admite outros deuses para além dele. A mesma interpretação também exigia que se fizesse uma diferenciação entre a ideia da concepção de um Deus local (numem locale), visto num plano espacial e a concepção de um Deus pessoal (numem personale) visto num plano de Eu Tu[3]. Esta dicotomia entre apetência em se sentir de forma natural a encarar e a viver a divindade através dos movimentos cíclicos que conhecemos e reconhecemos, e a introdução de um movimento religioso vindo de fora e introduzido por estranhos vai acabar por permitir o choque entre a religião cristão tipicamente colonial com os ideias da independência. Por isso, a questão será: perante tudo isso, isto é, perante o que vivemos e vimos na Europa com o problema alemão, a nossa religião tem ou não razão de existir e somos ou não superiores aos europeus?
É obvio que à primeira vista seria fácil dizer, a nossa religião tem razão de sobra para existir e somos superiores. Nós nunca faríamos uma coisa dessas. Porém, a resposta foi muito comedida. Não somos nem superiores nem inferiores. Somos gentes à parte, gente com uma identidade que merece ser olhada com dignidade e respeitada pelo valor que tem. Foi portanto neste pressuposto com base no fracasso da Europa com o problema alemão que vai nascer verdadeiramente a ideia consciente da independência em África. No entanto, muito cedo os africanos depararam com uma dicotomia que até hoje lhes é fatal. Trata-se da relação entre o discurso e acção em política. Como vestir a pele de um bom político e ser ao mesmo tempo um bom africano? Desde logo esta questão levanta um outro problema. A questão entre o discurso e acção traz à ribalta o problema da identidade. Esta identidade que os africanos descobriram sobretudo em contacto com os europeus. Será que todo africano é africano? Será que os africanos têm uma referência comum tirando a colonização, a escravatura e a pobreza? No seu livro “A ideia da Europa”, George Steiner oferece-nos um testemunho um tanto quanto chocante mas que não deixa de ser menos verdade no que diz respeito à questão da identidade africana. Relata uma conversa que teve na África de Sul com um uma pessoa ligada à ANC em pleno apartheid. Na pergunta, como é possível? Vocês não tocaram em nenhum branco? Vocês são treze por um? Um dos chefes da ANC diz: eu posso responder: Os cristãos têm os Evangelhos, vocês, judeus têm o Talmude, o Antigo Testamento, o Mishnah, os meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das Kapital. Nós, negros, não temos nenhum livro.”[4]
Nós não temos nenhum livro, esta é uma grande verdade. A África nunca conseguiu definir a sua identidade nem a nível interno nem a nível externo. A querela da identidade africana no amanhecer das independências faz jus a este desabafo do interlocutor de George Steiner. A identidade africana nunca foi uma questão de unanimidade, pois não existindo tinha que ser criada e, sobretudo, o acto da sua criação tinha que ser um acto de inteligência. A este respeito, o presidente Léopold Sédar Senghor do Senegal, parece ser o único líder africano entre os pais das independências a ter percebido isso. Assim, com o movimento a “Negritude e Humanismo”, Senghor, longe de fazer uma proclamação tribal de África, dá uma resposta política alternativa ao Conciencismo de N´krumah, à Autodependência de Nyerere e à Autenticidade de Mobuto[5].
A “Negritude e o humanismo” de Senghor, não vêm reclamar só o espaço da identidade negro-africano, como também o próprio papel do homem africano na história da humanidade. A este respeito, vai elaborar um paralelismo histórico entre a rainha de Saba, o rei Salomão e o povo judeu, para explicar a participação do homem africano na redenção da humanidade. Senghor afasta assim a África de um certo cantonismo tribal e lança-a para o centro do mundo e da humanidade sem que ela tenha que perder aquilo que para ela é essencial para a sua identidade.
Contudo, a interpretação da Negritude por parte de Senghor vai conhecer grandes contestações de muitos intelectuais africanos. Por exemplo, Frantz Fano reagirá duramente ao prefácio do livro de Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie negre d’expression française et malgache, feito por Sartre. Partindo da base de que a Negritude caracteriza-se pela “negação”, “pela recusa do outro” e pela “africanização do ser” e pela revelação e valorização da cultura africana e afro-americana, Frantz Fano não compreenderá porque razão Sartre terá escrito o que escreveu sobre a Negritude.
“A Negritude aparece como o tempo fraco duma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco é a tese; a posição da Negritude como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este momento negativo não tem suficiência por ele mesmo e os negros que o usam sabem-no muito bem; eles sabem que ele visa a preparar a síntese ou a realização humana numa sociedade sem raças. Assim, a Negritude é para ser destruída, é passagem e não termo e nem o fim último”.
A cólera de Frantz Fano está assente sobretudo no facto de Sartre pensar que a Negritude não tem suficiência por si mesmo e que enquanto movimento é chamado à destruição e que não passa de um meio, de um instrumento da contingência em vez de um produto finalístico. Poucos são os revolucionários africanos que não tiveram a mesma reacção e o mesmo sentimento que Frantz Fano. A confusão porém reside no termo negatividade usado por Sartre. Ao empregar esta expressão, Sartre faz apelo a uma conjuntura da filosofia espiritualista de Hegel. Com efeito, para Hegel, o Espírito também é “negatividade”, bem como a Liberdade e a Consciência, ou seja, tudo o que se opõe ao imediato.
“Sartre faz explicitamente apelo à dialéctica hegeliana, processo no qual um primeiro momento, a “tese”, suscita necessariamente o seu contrário, a “antítese”, a luta seguinte fazendo aparecer um terceiro termo, a “síntese”, que conservará as perfeições dos dois primeiros termos e fará desaparecer as suas imperfeições. Ao momento superior, Hegel chama Aufhebung - do verbo aufhaben, que significa por vezes ultrapassar, suprimir e conservar! O “momento negativo” do processo não é portanto uma oposição estéril qu se contentaria em negar a tese sem nada lhe levar de positivo e seria destinado a desaparecer pura e simplesmente depois da luta. Ao contrário, ele leva qualidades novas, não contidos no primeiro termo, e que ele impusera, pois eles serão conservados na síntese. Negar a negação para Hegel, não significa rejeitá-la, como no tribunal se rejeita uma queixa, mas terminar a querela reconhecendo os direitos respectivos das partes e reconciliando-as“[6].
Com efeito, Jean Paul Sartre já tinha estado numa outra polémica em relação à África ao afirmar que havia uma essência negra, afirmação aliás que partilha com Senghor. Em 1967, numa tese de doutoramento de Lilyan Kesteloot, esta afirmação será questionada e posta em causa pela investigadora na tese (Les écrivains noires de langue française: naissance d’une litterature)[7]. Pois, se se admitir que há uma essência africana dir-se-ia o mesmo para de uma essência branca, amarela…, algo que segundo Manuel Ferreira, a antropologia moderna desmente categoricamente. A resposta de Lilyan à Sartre é de que as diferenças humanas que se aceitam são aquelas que decorrem da cultura no sentido amplo da palavra e não aquelas vistas no prisma racial e segundo ela, a raça não tem nada a ver com a Negritude! A essência do negro não é em nada diferente da essência de um branco. Lilyan recusa também o facto de Sartre pensar que com base na dialéctica hegeliana, tese, antítese e síntese e uma vez adquirida a liberdade a partir da libertação nacional com a destruição do colonialismo, a Negritude deixaria de ter razão para existir. Segundo ela, se a Negritude é uma forma de estar no mundo negro, esta condição nunca se viria a alterar com o desaparecimento do Outro, isto é, do colonizador.
Todavia, Sartre tinha razão na sua afirmação uma vez que a Negritude representava duas correntes de pensamentos: uma que tinha a ver com o carácter cultural e valorativo do mundo africano e outra que representava a contestação política da colonização. Ora segundo Sartre, esta segunda característica deixaria de ter razões de peso para existir com a aquisição das independências, as independências significariam ausências de razões para formular as mesmas criticas; porém, a cultura e a valoração africana manteria intacta e inquestionável. Contra o ritmo e contra a visão dos pais das independências, muitos intelectuais africanos acabariam por apoiar a tese de Sartre entre eles, o premio Nobel nigeriano, Wole Soynka. Questionando uma vez num simpósio, Soynka respondeu lapidarmente, “Eu penso que não é necessário que um tigre corra de todos os lados para proclamar a sua tigritude… é um pouco desleal”. A este respeito, J. Jahn conta que numa conferência que ele mesmo registou em banda sonora em Berlim em 1964, Soynka terá dito:
“Eu dizia: “O tigre não proclama a sua tigritude, um tigre salta.” Noutros termos: não fica a dizer: Eu sou um tigre”. Quando se passa lá onde ele está e agente dá conta do esqueleto de uma gazela, então ficamos a saber que algum tigre teria andado por ai…”[8].
A questão portanto que se pretende demonstrar é que a Negritude enquanto facto, não foi inventado. Ele existe. Trata-se agora de tentar libertá-la do ambiente sufocante onde se encontra a penar na imagem do poder colonial, é por isso que o “movimento da Negritude não poderia ter criado a Negritude, mas sim revelar a Negritude ao mundo, impondo o seu reconhecimento como valor universal” da expressão cultural africana. Daí que efectivamente Sartre tinha razão ao prever que a Negritude enquanto simbologia política deixaria de ter razões de existir com as independências.
Contra Senghor e contra Sartre não faltaram personalidades africanas da área da política e da cultura que atacaram duramente o conceito de Negritude que os dois defendiam; entre eles destacam-se o presidente Sékou Touré e o professor Stanisllas Adotevi. Senghor é sobretudo atacado pelos dois por ter preferido esta frase: “Se a razão é helénica, a emoção é negra”, mais tarde tentado responder aos seus detractores dirá: “O negro não é desprovido de razão como me acusam de tê-lo dito. Mas a sua razão não é discursiva; é sintética (…): A razão europeia é analítica pela utilização, a razão negra intuitiva pela participação”[9].
“É certo que a Negritude, enquanto manifesto cultural e político mobilizador, transformou a identidade social cultural dos povos negros numa arma de emancipação e num projecto de renascimento. Ela lutou contra o euro centrismo, o racismo e os preconceitos, a incompreensão e arrogância das potências colónias triunfantes; ela rejeitou a aculturação, a assimilação e alienação, dessacralizou o paradigma cultural ocidental, até então considerado como um critério universal de referência, afirmou vigorosamente o direito à diferença e familiarizou os Negros com a noção ainda nova do relativismo cultural”[10].
A teoria da Negritude também abriu caminho a outros tipos de teoria em África como por exemplo, a africanidade e a arabidade. Assim, desde a fundação da O.U.A[11] em 1963, que alguns líderes africanos tendo-se apercebido da dificuldade crescente de uma identificação continental em relação ao exterior, decidiram criar um conceito que oferecesse a unidade do continente não só a nível interno como também externo; foi assim que surgiu o conceito de africanidade, que procurava representar “o conjunto dos pontos comuns às diversas culturas africanas” procurando deste modo deixar de lado as pequenas grandes diferenças para exaltar a “identidade fundamental” definindo-se assim em oposição à Negritude senghoriana.
Assim, ao defenderem a africanidade contra a Negritude, alguns dirigentes e intelectuais africanos quiseram agradar e prestar homenagem aos árabes africanos ainda que isso implicasse guerra aberta contra alguns intelectuais e dirigentes políticos da África negra. “Alguns vêem na Negritude uma doutrina de exaltação, defensiva e racista, de um património cultural de discutível conteúdo, porque globalizado e caracterizado pelo espelho deformado dos etnólogos europeus que definiram e interpretaram os seus dados de base”[12]. Contudo, a tentativa de rejeição da Negritude pela africanidade e arabidade não foi consequente, uma vez que as duas teorias apresentavam muitas lacunas ideológicas e de sustentabilidade. De um lado, o conceito de africanidade não diferia no fundo com aquela apresentada pela Negritude e de outro lado a questão da arabidade era contraditória já que em África os árabes africanos se consideravam mais árabes que africanos e no seio da comunidade global árabe procuravam exaltar a sua africanidade ou a sua Negritude. Tudo isso fez com que os dois conceitos deixassem de ter o peso político que tem por exemplo a Negritude.
Se é verdade que o presidente Senghor conseguiu ganhar a batalha ideológica em relação aos seus pares, não é menos verdade que a Negritude e o humanismo não se conseguiram fincar como instrumento da identidade que caracteriza os africanos ou negro-africanos. Assim, a África para além de não resolver o problema da sua identidade, ainda tem por resolver o problema do discurso e acção em política. À par o problema da falta de intrusão entre o discurso e acção na política africana, está também o facto de os Estados africanos serem países à procura do moderno conceito da nação com enfoque para uma simbiose sobre a composição étnica, cultural e religiosa no continente.
Segundo autores como Hannah Arendt, o discurso e acção revelam o quanto o homem depende dos outros[13]. Em política, a má gestão desta dependência pode revelar-se catastrófica. Na África dos pós independência, poucos líderes conseguiram elaborar um discurso que permitisse o continente conquistar o mundo e sair do gueto de inferioridade. Este facto tem a ver com o alheamento por parte dos pais fundadores das independências, da virtude política e da grandeza de alma, adjectivos segundo os antigos, indispensáveis para qualquer homem que ambicione desenvolver ou fazer uma boa política. Este handicape fez com que a política concebida no continente fosse à partida uma política sem ambição, já que lhe faltava o principal motor político, isto é, a virtude.
Encurralado entre a opção pelo capitalismo e o marxismo leninista, o continente fechou-se numa espécie de espírito de revolta e de vingança contra tudo o que vinha do Ocidente. Na Guiné-Bissau, foram queimados carros e muitos outros materiais deixados pelo colono português, pois segundo os novos senhores do poder no país, aqueles carros e outros objectos representavam o espírito do colonizador. Portanto, tudo devia ser queimado e esperar por aquilo que ia chegar de Boé[14]. Este fechamento também se revelou nefasto para os africanos, pois se antes lhes faltava a capacidade discursiva, com o fechamento, abortaram todas as hipóteses da elaboração do discurso. Com a morte do discurso também mataram a capacidade de acção, uma vez que qualquer acção pressupõe partilha e pluralidade, ora nenhuma destas coisas se faz fora de um espírito discursivo maduro. Este encurralamento deixa os africanos num impasse, quase que, num beco sem saída, mas reconhecer este impasse ou encurralamento, seria admitir que estavam a ser menos capazes do que os colonizadores e isto não era bom para o valor que queriam dar às independências. Assim, volta novamente em discussão a questão da identidade política africana. Os críticos da doutrina Senghor encontrarão nela uma beleza linguística mas sem um sustentáculo da identidade que se quer para África; entre eles estavam os presidentes Ahmed Sékou Touré da Guiné Conakry e Félix Houphouet-boigny da Costa do Marfim. Tendo posto em causa a doutrina Senghor, os dois homens mostraram estar dispostos em apoiar mais as teses do presidente da Tanzânia, Julius Nyerere[15] e do presidente do Zaire, Mobuto Sese Seko[16]. Mas sendo estas teses construídas num idealismo marxista e em “trabalho” rudimentar, muito cedo se deram mal.
Numa linguagem de John Locke e de Hannah Arendt, diríamos que as teses de Nyerere e de Mobuto se situavam mais numa espécie de “ labor de seu corpo” do que no “trabalho de suas mãos”, em outras palavras, a falta de uma finalidade consistente fez com que as duas teses se limitassem a um consumo de sobrevivência quer em termos materiais quer em termos políticos. Pois “o que o labor produz, ao contrário do trabalho, destina-se, portanto, ao consumo ou, por outras palavras, à sua destruição, ao tempo instantâneo”[17]. A falta de articulação entre o discurso e acção em política afectou também a própria tentativa da conquista do espaço público a nível dos políticos africanos, uma vez que o espaço público exige uma relação de pluralidade. Ora, “o novo animal laborans que não só está isolado num contexto público, mas ainda desacompanhado em termos privados”[18], não podia aceitar as regras de igualdade que o espaço público ditava. Em parte, porque estas mesmas regras eram contrárias à concepção da natureza da política do homem africano, sinal de que, apesar de reclamar a independência, não estava preparado para viver a política na independência segundo os valores tradicionais da política deixados pelo colonizador. Por exemplo, em muitos casos, a simples contestação de um governo serviu para uma espécie de catalizador para várias guerras civis africanas; sendo que em muitos casos isso tinha a ver com o vazio político deixado pelos colonizadores, obrigando aos africanos à uma passagem da transição imediata e radical para a própria perdição das instituições políticas e sociais.
Este entrave fez com que o político africano perca o espaço público antes mesmo de o conquistar e, consequentemente esta perda vai reforçar a nova forma de escravatura através de actuação do animal laborans. Os exemplos das doutrinas de Nyerere e de Mobuto são testemunhas da nova forma de escravatura, uma vez que eram teorias de produção e de reflexão feitas com o intuito de subsistência e de sobrevivência. Este ciclo vai proporcionar um casamento entre o totalitarismo e os regimes africanos, que vai desde a destruição do espaço público à aniquilação do espaço privado, uma vez que:
“O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera pública da vida, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como uma forma de governo é novo no sentido em que não se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada”.[19]
Isto vai desgastar profundamente a imagem da capacidade de liderança dos líderes africanos. Como demonstrar ao mudo que a África tem condições para ser independente? E como esconder a brutal ineficiência dos seus líderes e a consequente falta de projecto político? Por exemplo em relação à Guiné-Bissau, entre os três principais objectivos traçados pelo PAIGC, só um deles foi conseguido. O partido de Amílcar Cabral traçou três objectivos que eram: conseguir a independência do país, conseguir o desenvolvimento e conseguir a unidade de todos os povos da Guiné-Bissau independentemente da cor da pele e de fronteira. Os dois últimos objectivos não foram conseguidos e não estão a ser conseguidos. São situações como as da Guiné que vão obrigar os africanos a adoptarem uma guerra ideológica que anda entre a persuasão política e a verdade política.
[1] Victor Ramalho, África que futuro? P. 18, Edições Cosmos.
[2] Hannah Arendt, A promessa da Política, p. 48.
[3] Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo; p. 88.
[4] George Steiner, A ideia da Europa; p. 41.
[5] Engilbert Mveng, A identidade africana; p. 112.
[6] Manuel Ferreira, O discurso no percurso africano I; p. 61.
[7] Opus. Cit.
[8] Opus. Cit. P. 63.
[9] Opus. Cit. P. 65.
[10] Introdução à cultura africana, vários autores; p. 15.
[11] Organização da Unidade Africa.
[12] Introdução à cultura africana; p. 21.
[13] Margarida Amaral, Os mundos da Razão, Esfera do Caos; p. 43.
[14] Local onde o partido de Amílcar Cabral proclamou a Independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973.
[15] A auto dependência
[16] A autenticidade
[17] Opus. Cit. P. 67.
[18]Opus. Cit. P. 68.
[19] Margarida, Amaral Citando As origem do Tatalitarismo; p. 69.
De facto, se nas outras colónias africanas de expressão inglesa e francesa, os africanos começaram a desconfiar da superioridade moral, humana e política dos europeus por causa do que viveram directamente em confronto e em contacto com os europeus que eram mortos pelos seus irmãos europeus, as colónias da língua portuguesa estavam à “margem” de toda esta experiência que iria ter um levantamento político importante no continente africano.
Os africanos colonizados já vinham sentindo há muito que o branco colonizador não podia ser um ser tão perfeito como eles pensavam. Um ser que em algumas situações só estava um pouco abaixo de deus e em outras, assimilava-se a essência da perfeição de um deus. Esta desconfiança da perfeição do branco já vinha fazendo o caminho sobretudo na revolta e na impotência dos chefes tradicionais. O protagonismo que lhes foi retirado pela intrusão da colonização, foi gerando neles a dicotomia do desespero e do desgaste da concepção do poder absoluto que queriam ter. Com efeito, o branco depois de ter sido visto com medo, fascínio e admiração, passou a ser alvo de uma presença repugnante; só que este repudio tinha que ser um repudio cauteloso, uma vez que o colonizador tinha em tudo meios muito mais eficiente de que o colonizado. Esta limitação dos meios pela parte dos colonizados construiu-se a partir de uma dicotomia que balançava entre à obediência induzida pela colaboração e o ódio que eles tinham a esta mesma obediência.
Não tendo outra alternativa para salvaguardar os seus poderes, os chefes tradicionais foram obrigados a colaborar e a obedecer o poder colonial. Esta colaboração permitia-lhes em parte ter estatutos de amigos do colonizador ainda que esta amizade lhes retirasse a primazia do poder. A colaboração era também uma maneira de eles encontrarem no colonizador um aliado para indomar os seus adversários. Acontece porém, que muito cedo descobrem que em muitos dos casos, os ditos adversários beneficiavam da mesma regalia que eles junto do colonizador. Esta ambiguidade do colonizador começou a suscitar cada vez mais o ódio e a desconfiança. Assim, quanto mais se intensificava a colaboração, mais esta intensificação fazia crescer o ódio milimetricamente calculado para derrubar o poder colonizador.
O regresso dos africanos que estiveram a combater ao lado dos europeus particularmente na segunda grande guerra e o interesse da URSS na autodeterminação dos povos sob o jugo colonial[1] vai mudar tudo. A experiência em terras europeias começou a servir de base para desmistificar a teia do sagrado que o homem africano tinha para com o homem branco. Agora, nem a moral e muito menos a política podia justificar aquilo que os africanos viram e viveram em solos europeus ou em Indochina. A inacção africana cunhada fortemente pelos diversos catecismos religiosos, particularmente o da Igreja Católica, não podia deixar de ser questionada. Surge assim na alma do intelectual africano uma espécie de paradoxo da verdade cristã, ou melhor, da verdade do cristianismo, seja ela protestante ou católico.
No meio do problema alemão, três notas merecem destaque no que diz respeito ao choque que os africanos tiveram quer em relação ao cristianismo na Europa quer em relação à própria relação social entre as pessoas na Europa. Entre os 10 Mandamentos que os africanos tinham aprendido na catequese, viram três destes 10 Mandamentos desrespeitados profundamente na Europa. Se os militares africanos cristãos questionavam o desrespeito puramente num plano religioso no âmbito da visão cristã que naquela época era de um Deus castigador e vingador, os outros africanos não cristãos, questionavam num plano cultural (ligado à tradição africana) e ético. Como é possível que isto acontece com pessoas civilizadas e cristãs? Gente que nos ensina a conhecer um Deus justo e bom, um Deus que quer que os homens sejam irmãos e que os torna imortais? Estas perguntas feitas pelos africanos antagónicos quer a nível da religião quer a nível da moral, recaíam sobretudo em três dos 10 Mandamentos, concretamente: o quarto, o quinto e o oitavo Mandamento.
Honrar pai e mãe, não matarás e não levantarás falso testemunho.
A barbaridade cometida contra o quarto, o quinto e o oitavo mandamento chocou muito aos africanos. Com efeito, havia uma recomendação de Jesus Cristo muito cara aos missionários em África, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esta ruptura moral com a lei de Talião e o seguidismo moseista, foi o grande cavalo de batalha dos missionários. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é uma extensão da lei dada por Moisés mas é também o resumo da fraternidade querida por Deus e nas palavras de Jesus Cristo, esta recomendação é de uma elevação enorme, uma vez que ela incarna a ideia do maior de todos os mandamentos. Se em África esta fraternidade universal anunciada pelo cristianismo não era propriamente uma novidade, nem por isso deixava de ser uma contradição essencial, uma vez que o poder politico colonial fundia-se com o poder religioso ao ponto de chegar a colocar em conflito tribo contra tribo, região contra região. Porém, é a guerra mundial que vai permitir ainda mais aos africanos de ver esta contradição essencial. Ao verem desusada a recomendação “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, viram consequentemente desinformado o quarto, o quinto e o oitavo mandamento. Quem não respeita o seu próximo como a si mesmo, não pode deixar de caluniá-lo e por conseguinte de matá-lo. Agora a questão é: se tudo isso é verdade, ou seja, se o cristianismo é verdade, porque é que eles não o vivem? Estes desvios morais e políticos daquilo que era a grandeza Ocidental em África colonizada vai fazer com que os africanos pusessem duramente em causa a moral e a autenticidade do desejo do Deus cristão do Ocidente e será também o desvio destes mandamentos e da insustentabilidade politica e moral em África colonial que vão constituir o alicerce do debate da segunda fase da questão alemã em África. O débâcle do poder colonial em África tem as suas origens sobre tudo na perda da autoridade religiosa, isto é, na desconfiança da ideia e do desejo do Deus universal, o Deus que canta e fala a língua judaico-cristã, já que no plano político a autoridade consistia simplesmente no desequilíbrio das forças, entre o colonizado e colonizador.
É a morte da religião cristã e a sua desilusão que vai causar a grande reviravolta da concepção que as colónias tinham para com os colonizadores. Os pais das independências africanas souberam explorar aquilo que Hannah Arendt considera ser um “erro das correntes autoritárias do pensamento político crerem que a autoridade pode sobreviver ao declínio da religião institucional e à ruptura com a continuidade da tradição…. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começam a vacilar”[2].
Nesta perspectiva, também se coloca a questão da interpretação da Profissão de fé cristã pelos africanos. Impunha-se a razão saber se a Profissão de fé cristã devia ser entendida como uma opinião ou como uma decisão existencial. “Jave, teu Deus, é um Deus único” que não admite outros deuses para além dele. A mesma interpretação também exigia que se fizesse uma diferenciação entre a ideia da concepção de um Deus local (numem locale), visto num plano espacial e a concepção de um Deus pessoal (numem personale) visto num plano de Eu Tu[3]. Esta dicotomia entre apetência em se sentir de forma natural a encarar e a viver a divindade através dos movimentos cíclicos que conhecemos e reconhecemos, e a introdução de um movimento religioso vindo de fora e introduzido por estranhos vai acabar por permitir o choque entre a religião cristão tipicamente colonial com os ideias da independência. Por isso, a questão será: perante tudo isso, isto é, perante o que vivemos e vimos na Europa com o problema alemão, a nossa religião tem ou não razão de existir e somos ou não superiores aos europeus?
É obvio que à primeira vista seria fácil dizer, a nossa religião tem razão de sobra para existir e somos superiores. Nós nunca faríamos uma coisa dessas. Porém, a resposta foi muito comedida. Não somos nem superiores nem inferiores. Somos gentes à parte, gente com uma identidade que merece ser olhada com dignidade e respeitada pelo valor que tem. Foi portanto neste pressuposto com base no fracasso da Europa com o problema alemão que vai nascer verdadeiramente a ideia consciente da independência em África. No entanto, muito cedo os africanos depararam com uma dicotomia que até hoje lhes é fatal. Trata-se da relação entre o discurso e acção em política. Como vestir a pele de um bom político e ser ao mesmo tempo um bom africano? Desde logo esta questão levanta um outro problema. A questão entre o discurso e acção traz à ribalta o problema da identidade. Esta identidade que os africanos descobriram sobretudo em contacto com os europeus. Será que todo africano é africano? Será que os africanos têm uma referência comum tirando a colonização, a escravatura e a pobreza? No seu livro “A ideia da Europa”, George Steiner oferece-nos um testemunho um tanto quanto chocante mas que não deixa de ser menos verdade no que diz respeito à questão da identidade africana. Relata uma conversa que teve na África de Sul com um uma pessoa ligada à ANC em pleno apartheid. Na pergunta, como é possível? Vocês não tocaram em nenhum branco? Vocês são treze por um? Um dos chefes da ANC diz: eu posso responder: Os cristãos têm os Evangelhos, vocês, judeus têm o Talmude, o Antigo Testamento, o Mishnah, os meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das Kapital. Nós, negros, não temos nenhum livro.”[4]
Nós não temos nenhum livro, esta é uma grande verdade. A África nunca conseguiu definir a sua identidade nem a nível interno nem a nível externo. A querela da identidade africana no amanhecer das independências faz jus a este desabafo do interlocutor de George Steiner. A identidade africana nunca foi uma questão de unanimidade, pois não existindo tinha que ser criada e, sobretudo, o acto da sua criação tinha que ser um acto de inteligência. A este respeito, o presidente Léopold Sédar Senghor do Senegal, parece ser o único líder africano entre os pais das independências a ter percebido isso. Assim, com o movimento a “Negritude e Humanismo”, Senghor, longe de fazer uma proclamação tribal de África, dá uma resposta política alternativa ao Conciencismo de N´krumah, à Autodependência de Nyerere e à Autenticidade de Mobuto[5].
A “Negritude e o humanismo” de Senghor, não vêm reclamar só o espaço da identidade negro-africano, como também o próprio papel do homem africano na história da humanidade. A este respeito, vai elaborar um paralelismo histórico entre a rainha de Saba, o rei Salomão e o povo judeu, para explicar a participação do homem africano na redenção da humanidade. Senghor afasta assim a África de um certo cantonismo tribal e lança-a para o centro do mundo e da humanidade sem que ela tenha que perder aquilo que para ela é essencial para a sua identidade.
Contudo, a interpretação da Negritude por parte de Senghor vai conhecer grandes contestações de muitos intelectuais africanos. Por exemplo, Frantz Fano reagirá duramente ao prefácio do livro de Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie negre d’expression française et malgache, feito por Sartre. Partindo da base de que a Negritude caracteriza-se pela “negação”, “pela recusa do outro” e pela “africanização do ser” e pela revelação e valorização da cultura africana e afro-americana, Frantz Fano não compreenderá porque razão Sartre terá escrito o que escreveu sobre a Negritude.
“A Negritude aparece como o tempo fraco duma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco é a tese; a posição da Negritude como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este momento negativo não tem suficiência por ele mesmo e os negros que o usam sabem-no muito bem; eles sabem que ele visa a preparar a síntese ou a realização humana numa sociedade sem raças. Assim, a Negritude é para ser destruída, é passagem e não termo e nem o fim último”.
A cólera de Frantz Fano está assente sobretudo no facto de Sartre pensar que a Negritude não tem suficiência por si mesmo e que enquanto movimento é chamado à destruição e que não passa de um meio, de um instrumento da contingência em vez de um produto finalístico. Poucos são os revolucionários africanos que não tiveram a mesma reacção e o mesmo sentimento que Frantz Fano. A confusão porém reside no termo negatividade usado por Sartre. Ao empregar esta expressão, Sartre faz apelo a uma conjuntura da filosofia espiritualista de Hegel. Com efeito, para Hegel, o Espírito também é “negatividade”, bem como a Liberdade e a Consciência, ou seja, tudo o que se opõe ao imediato.
“Sartre faz explicitamente apelo à dialéctica hegeliana, processo no qual um primeiro momento, a “tese”, suscita necessariamente o seu contrário, a “antítese”, a luta seguinte fazendo aparecer um terceiro termo, a “síntese”, que conservará as perfeições dos dois primeiros termos e fará desaparecer as suas imperfeições. Ao momento superior, Hegel chama Aufhebung - do verbo aufhaben, que significa por vezes ultrapassar, suprimir e conservar! O “momento negativo” do processo não é portanto uma oposição estéril qu se contentaria em negar a tese sem nada lhe levar de positivo e seria destinado a desaparecer pura e simplesmente depois da luta. Ao contrário, ele leva qualidades novas, não contidos no primeiro termo, e que ele impusera, pois eles serão conservados na síntese. Negar a negação para Hegel, não significa rejeitá-la, como no tribunal se rejeita uma queixa, mas terminar a querela reconhecendo os direitos respectivos das partes e reconciliando-as“[6].
Com efeito, Jean Paul Sartre já tinha estado numa outra polémica em relação à África ao afirmar que havia uma essência negra, afirmação aliás que partilha com Senghor. Em 1967, numa tese de doutoramento de Lilyan Kesteloot, esta afirmação será questionada e posta em causa pela investigadora na tese (Les écrivains noires de langue française: naissance d’une litterature)[7]. Pois, se se admitir que há uma essência africana dir-se-ia o mesmo para de uma essência branca, amarela…, algo que segundo Manuel Ferreira, a antropologia moderna desmente categoricamente. A resposta de Lilyan à Sartre é de que as diferenças humanas que se aceitam são aquelas que decorrem da cultura no sentido amplo da palavra e não aquelas vistas no prisma racial e segundo ela, a raça não tem nada a ver com a Negritude! A essência do negro não é em nada diferente da essência de um branco. Lilyan recusa também o facto de Sartre pensar que com base na dialéctica hegeliana, tese, antítese e síntese e uma vez adquirida a liberdade a partir da libertação nacional com a destruição do colonialismo, a Negritude deixaria de ter razão para existir. Segundo ela, se a Negritude é uma forma de estar no mundo negro, esta condição nunca se viria a alterar com o desaparecimento do Outro, isto é, do colonizador.
Todavia, Sartre tinha razão na sua afirmação uma vez que a Negritude representava duas correntes de pensamentos: uma que tinha a ver com o carácter cultural e valorativo do mundo africano e outra que representava a contestação política da colonização. Ora segundo Sartre, esta segunda característica deixaria de ter razões de peso para existir com a aquisição das independências, as independências significariam ausências de razões para formular as mesmas criticas; porém, a cultura e a valoração africana manteria intacta e inquestionável. Contra o ritmo e contra a visão dos pais das independências, muitos intelectuais africanos acabariam por apoiar a tese de Sartre entre eles, o premio Nobel nigeriano, Wole Soynka. Questionando uma vez num simpósio, Soynka respondeu lapidarmente, “Eu penso que não é necessário que um tigre corra de todos os lados para proclamar a sua tigritude… é um pouco desleal”. A este respeito, J. Jahn conta que numa conferência que ele mesmo registou em banda sonora em Berlim em 1964, Soynka terá dito:
“Eu dizia: “O tigre não proclama a sua tigritude, um tigre salta.” Noutros termos: não fica a dizer: Eu sou um tigre”. Quando se passa lá onde ele está e agente dá conta do esqueleto de uma gazela, então ficamos a saber que algum tigre teria andado por ai…”[8].
A questão portanto que se pretende demonstrar é que a Negritude enquanto facto, não foi inventado. Ele existe. Trata-se agora de tentar libertá-la do ambiente sufocante onde se encontra a penar na imagem do poder colonial, é por isso que o “movimento da Negritude não poderia ter criado a Negritude, mas sim revelar a Negritude ao mundo, impondo o seu reconhecimento como valor universal” da expressão cultural africana. Daí que efectivamente Sartre tinha razão ao prever que a Negritude enquanto simbologia política deixaria de ter razões de existir com as independências.
Contra Senghor e contra Sartre não faltaram personalidades africanas da área da política e da cultura que atacaram duramente o conceito de Negritude que os dois defendiam; entre eles destacam-se o presidente Sékou Touré e o professor Stanisllas Adotevi. Senghor é sobretudo atacado pelos dois por ter preferido esta frase: “Se a razão é helénica, a emoção é negra”, mais tarde tentado responder aos seus detractores dirá: “O negro não é desprovido de razão como me acusam de tê-lo dito. Mas a sua razão não é discursiva; é sintética (…): A razão europeia é analítica pela utilização, a razão negra intuitiva pela participação”[9].
“É certo que a Negritude, enquanto manifesto cultural e político mobilizador, transformou a identidade social cultural dos povos negros numa arma de emancipação e num projecto de renascimento. Ela lutou contra o euro centrismo, o racismo e os preconceitos, a incompreensão e arrogância das potências colónias triunfantes; ela rejeitou a aculturação, a assimilação e alienação, dessacralizou o paradigma cultural ocidental, até então considerado como um critério universal de referência, afirmou vigorosamente o direito à diferença e familiarizou os Negros com a noção ainda nova do relativismo cultural”[10].
A teoria da Negritude também abriu caminho a outros tipos de teoria em África como por exemplo, a africanidade e a arabidade. Assim, desde a fundação da O.U.A[11] em 1963, que alguns líderes africanos tendo-se apercebido da dificuldade crescente de uma identificação continental em relação ao exterior, decidiram criar um conceito que oferecesse a unidade do continente não só a nível interno como também externo; foi assim que surgiu o conceito de africanidade, que procurava representar “o conjunto dos pontos comuns às diversas culturas africanas” procurando deste modo deixar de lado as pequenas grandes diferenças para exaltar a “identidade fundamental” definindo-se assim em oposição à Negritude senghoriana.
Assim, ao defenderem a africanidade contra a Negritude, alguns dirigentes e intelectuais africanos quiseram agradar e prestar homenagem aos árabes africanos ainda que isso implicasse guerra aberta contra alguns intelectuais e dirigentes políticos da África negra. “Alguns vêem na Negritude uma doutrina de exaltação, defensiva e racista, de um património cultural de discutível conteúdo, porque globalizado e caracterizado pelo espelho deformado dos etnólogos europeus que definiram e interpretaram os seus dados de base”[12]. Contudo, a tentativa de rejeição da Negritude pela africanidade e arabidade não foi consequente, uma vez que as duas teorias apresentavam muitas lacunas ideológicas e de sustentabilidade. De um lado, o conceito de africanidade não diferia no fundo com aquela apresentada pela Negritude e de outro lado a questão da arabidade era contraditória já que em África os árabes africanos se consideravam mais árabes que africanos e no seio da comunidade global árabe procuravam exaltar a sua africanidade ou a sua Negritude. Tudo isso fez com que os dois conceitos deixassem de ter o peso político que tem por exemplo a Negritude.
Se é verdade que o presidente Senghor conseguiu ganhar a batalha ideológica em relação aos seus pares, não é menos verdade que a Negritude e o humanismo não se conseguiram fincar como instrumento da identidade que caracteriza os africanos ou negro-africanos. Assim, a África para além de não resolver o problema da sua identidade, ainda tem por resolver o problema do discurso e acção em política. À par o problema da falta de intrusão entre o discurso e acção na política africana, está também o facto de os Estados africanos serem países à procura do moderno conceito da nação com enfoque para uma simbiose sobre a composição étnica, cultural e religiosa no continente.
Segundo autores como Hannah Arendt, o discurso e acção revelam o quanto o homem depende dos outros[13]. Em política, a má gestão desta dependência pode revelar-se catastrófica. Na África dos pós independência, poucos líderes conseguiram elaborar um discurso que permitisse o continente conquistar o mundo e sair do gueto de inferioridade. Este facto tem a ver com o alheamento por parte dos pais fundadores das independências, da virtude política e da grandeza de alma, adjectivos segundo os antigos, indispensáveis para qualquer homem que ambicione desenvolver ou fazer uma boa política. Este handicape fez com que a política concebida no continente fosse à partida uma política sem ambição, já que lhe faltava o principal motor político, isto é, a virtude.
Encurralado entre a opção pelo capitalismo e o marxismo leninista, o continente fechou-se numa espécie de espírito de revolta e de vingança contra tudo o que vinha do Ocidente. Na Guiné-Bissau, foram queimados carros e muitos outros materiais deixados pelo colono português, pois segundo os novos senhores do poder no país, aqueles carros e outros objectos representavam o espírito do colonizador. Portanto, tudo devia ser queimado e esperar por aquilo que ia chegar de Boé[14]. Este fechamento também se revelou nefasto para os africanos, pois se antes lhes faltava a capacidade discursiva, com o fechamento, abortaram todas as hipóteses da elaboração do discurso. Com a morte do discurso também mataram a capacidade de acção, uma vez que qualquer acção pressupõe partilha e pluralidade, ora nenhuma destas coisas se faz fora de um espírito discursivo maduro. Este encurralamento deixa os africanos num impasse, quase que, num beco sem saída, mas reconhecer este impasse ou encurralamento, seria admitir que estavam a ser menos capazes do que os colonizadores e isto não era bom para o valor que queriam dar às independências. Assim, volta novamente em discussão a questão da identidade política africana. Os críticos da doutrina Senghor encontrarão nela uma beleza linguística mas sem um sustentáculo da identidade que se quer para África; entre eles estavam os presidentes Ahmed Sékou Touré da Guiné Conakry e Félix Houphouet-boigny da Costa do Marfim. Tendo posto em causa a doutrina Senghor, os dois homens mostraram estar dispostos em apoiar mais as teses do presidente da Tanzânia, Julius Nyerere[15] e do presidente do Zaire, Mobuto Sese Seko[16]. Mas sendo estas teses construídas num idealismo marxista e em “trabalho” rudimentar, muito cedo se deram mal.
Numa linguagem de John Locke e de Hannah Arendt, diríamos que as teses de Nyerere e de Mobuto se situavam mais numa espécie de “ labor de seu corpo” do que no “trabalho de suas mãos”, em outras palavras, a falta de uma finalidade consistente fez com que as duas teses se limitassem a um consumo de sobrevivência quer em termos materiais quer em termos políticos. Pois “o que o labor produz, ao contrário do trabalho, destina-se, portanto, ao consumo ou, por outras palavras, à sua destruição, ao tempo instantâneo”[17]. A falta de articulação entre o discurso e acção em política afectou também a própria tentativa da conquista do espaço público a nível dos políticos africanos, uma vez que o espaço público exige uma relação de pluralidade. Ora, “o novo animal laborans que não só está isolado num contexto público, mas ainda desacompanhado em termos privados”[18], não podia aceitar as regras de igualdade que o espaço público ditava. Em parte, porque estas mesmas regras eram contrárias à concepção da natureza da política do homem africano, sinal de que, apesar de reclamar a independência, não estava preparado para viver a política na independência segundo os valores tradicionais da política deixados pelo colonizador. Por exemplo, em muitos casos, a simples contestação de um governo serviu para uma espécie de catalizador para várias guerras civis africanas; sendo que em muitos casos isso tinha a ver com o vazio político deixado pelos colonizadores, obrigando aos africanos à uma passagem da transição imediata e radical para a própria perdição das instituições políticas e sociais.
Este entrave fez com que o político africano perca o espaço público antes mesmo de o conquistar e, consequentemente esta perda vai reforçar a nova forma de escravatura através de actuação do animal laborans. Os exemplos das doutrinas de Nyerere e de Mobuto são testemunhas da nova forma de escravatura, uma vez que eram teorias de produção e de reflexão feitas com o intuito de subsistência e de sobrevivência. Este ciclo vai proporcionar um casamento entre o totalitarismo e os regimes africanos, que vai desde a destruição do espaço público à aniquilação do espaço privado, uma vez que:
“O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera pública da vida, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como uma forma de governo é novo no sentido em que não se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada”.[19]
Isto vai desgastar profundamente a imagem da capacidade de liderança dos líderes africanos. Como demonstrar ao mudo que a África tem condições para ser independente? E como esconder a brutal ineficiência dos seus líderes e a consequente falta de projecto político? Por exemplo em relação à Guiné-Bissau, entre os três principais objectivos traçados pelo PAIGC, só um deles foi conseguido. O partido de Amílcar Cabral traçou três objectivos que eram: conseguir a independência do país, conseguir o desenvolvimento e conseguir a unidade de todos os povos da Guiné-Bissau independentemente da cor da pele e de fronteira. Os dois últimos objectivos não foram conseguidos e não estão a ser conseguidos. São situações como as da Guiné que vão obrigar os africanos a adoptarem uma guerra ideológica que anda entre a persuasão política e a verdade política.
[1] Victor Ramalho, África que futuro? P. 18, Edições Cosmos.
[2] Hannah Arendt, A promessa da Política, p. 48.
[3] Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo; p. 88.
[4] George Steiner, A ideia da Europa; p. 41.
[5] Engilbert Mveng, A identidade africana; p. 112.
[6] Manuel Ferreira, O discurso no percurso africano I; p. 61.
[7] Opus. Cit.
[8] Opus. Cit. P. 63.
[9] Opus. Cit. P. 65.
[10] Introdução à cultura africana, vários autores; p. 15.
[11] Organização da Unidade Africa.
[12] Introdução à cultura africana; p. 21.
[13] Margarida Amaral, Os mundos da Razão, Esfera do Caos; p. 43.
[14] Local onde o partido de Amílcar Cabral proclamou a Independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973.
[15] A auto dependência
[16] A autenticidade
[17] Opus. Cit. P. 67.
[18]Opus. Cit. P. 68.
[19] Margarida, Amaral Citando As origem do Tatalitarismo; p. 69.