domingo, 19 de julho de 2009

A "NEGRITUDE" E A INFLUÊNCIA DO PROBLEMA ALEMÃO

Contrariamente às outras colónias africanas, as colónias da expressão portuguesa não conheceram directamente o impacto da influência do problema alemão. Este alheamento tem a ver com o facto de Portugal, país colonizador, não ter participado directamente nem na primeira nem na segunda grande guerra mundial. Aliás, este facto vai retardar comparativamente aos países francófonos e anglófonos a consciência política no espaço lusófono africano.
De facto, se nas outras colónias africanas de expressão inglesa e francesa, os africanos começaram a desconfiar da superioridade moral, humana e política dos europeus por causa do que viveram directamente em confronto e em contacto com os europeus que eram mortos pelos seus irmãos europeus, as colónias da língua portuguesa estavam à “margem” de toda esta experiência que iria ter um levantamento político importante no continente africano.
Os africanos colonizados já vinham sentindo há muito que o branco colonizador não podia ser um ser tão perfeito como eles pensavam. Um ser que em algumas situações só estava um pouco abaixo de deus e em outras, assimilava-se a essência da perfeição de um deus. Esta desconfiança da perfeição do branco já vinha fazendo o caminho sobretudo na revolta e na impotência dos chefes tradicionais. O protagonismo que lhes foi retirado pela intrusão da colonização, foi gerando neles a dicotomia do desespero e do desgaste da concepção do poder absoluto que queriam ter. Com efeito, o branco depois de ter sido visto com medo, fascínio e admiração, passou a ser alvo de uma presença repugnante; só que este repudio tinha que ser um repudio cauteloso, uma vez que o colonizador tinha em tudo meios muito mais eficiente de que o colonizado. Esta limitação dos meios pela parte dos colonizados construiu-se a partir de uma dicotomia que balançava entre à obediência induzida pela colaboração e o ódio que eles tinham a esta mesma obediência.
Não tendo outra alternativa para salvaguardar os seus poderes, os chefes tradicionais foram obrigados a colaborar e a obedecer o poder colonial. Esta colaboração permitia-lhes em parte ter estatutos de amigos do colonizador ainda que esta amizade lhes retirasse a primazia do poder. A colaboração era também uma maneira de eles encontrarem no colonizador um aliado para indomar os seus adversários. Acontece porém, que muito cedo descobrem que em muitos dos casos, os ditos adversários beneficiavam da mesma regalia que eles junto do colonizador. Esta ambiguidade do colonizador começou a suscitar cada vez mais o ódio e a desconfiança. Assim, quanto mais se intensificava a colaboração, mais esta intensificação fazia crescer o ódio milimetricamente calculado para derrubar o poder colonizador.
O regresso dos africanos que estiveram a combater ao lado dos europeus particularmente na segunda grande guerra e o interesse da URSS na autodeterminação dos povos sob o jugo colonial[1] vai mudar tudo. A experiência em terras europeias começou a servir de base para desmistificar a teia do sagrado que o homem africano tinha para com o homem branco. Agora, nem a moral e muito menos a política podia justificar aquilo que os africanos viram e viveram em solos europeus ou em Indochina. A inacção africana cunhada fortemente pelos diversos catecismos religiosos, particularmente o da Igreja Católica, não podia deixar de ser questionada. Surge assim na alma do intelectual africano uma espécie de paradoxo da verdade cristã, ou melhor, da verdade do cristianismo, seja ela protestante ou católico.
No meio do problema alemão, três notas merecem destaque no que diz respeito ao choque que os africanos tiveram quer em relação ao cristianismo na Europa quer em relação à própria relação social entre as pessoas na Europa. Entre os 10 Mandamentos que os africanos tinham aprendido na catequese, viram três destes 10 Mandamentos desrespeitados profundamente na Europa. Se os militares africanos cristãos questionavam o desrespeito puramente num plano religioso no âmbito da visão cristã que naquela época era de um Deus castigador e vingador, os outros africanos não cristãos, questionavam num plano cultural (ligado à tradição africana) e ético. Como é possível que isto acontece com pessoas civilizadas e cristãs? Gente que nos ensina a conhecer um Deus justo e bom, um Deus que quer que os homens sejam irmãos e que os torna imortais? Estas perguntas feitas pelos africanos antagónicos quer a nível da religião quer a nível da moral, recaíam sobretudo em três dos 10 Mandamentos, concretamente: o quarto, o quinto e o oitavo Mandamento.
Honrar pai e mãe, não matarás e não levantarás falso testemunho.
A barbaridade cometida contra o quarto, o quinto e o oitavo mandamento chocou muito aos africanos. Com efeito, havia uma recomendação de Jesus Cristo muito cara aos missionários em África, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esta ruptura moral com a lei de Talião e o seguidismo moseista, foi o grande cavalo de batalha dos missionários. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é uma extensão da lei dada por Moisés mas é também o resumo da fraternidade querida por Deus e nas palavras de Jesus Cristo, esta recomendação é de uma elevação enorme, uma vez que ela incarna a ideia do maior de todos os mandamentos. Se em África esta fraternidade universal anunciada pelo cristianismo não era propriamente uma novidade, nem por isso deixava de ser uma contradição essencial, uma vez que o poder politico colonial fundia-se com o poder religioso ao ponto de chegar a colocar em conflito tribo contra tribo, região contra região. Porém, é a guerra mundial que vai permitir ainda mais aos africanos de ver esta contradição essencial. Ao verem desusada a recomendação “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, viram consequentemente desinformado o quarto, o quinto e o oitavo mandamento. Quem não respeita o seu próximo como a si mesmo, não pode deixar de caluniá-lo e por conseguinte de matá-lo. Agora a questão é: se tudo isso é verdade, ou seja, se o cristianismo é verdade, porque é que eles não o vivem? Estes desvios morais e políticos daquilo que era a grandeza Ocidental em África colonizada vai fazer com que os africanos pusessem duramente em causa a moral e a autenticidade do desejo do Deus cristão do Ocidente e será também o desvio destes mandamentos e da insustentabilidade politica e moral em África colonial que vão constituir o alicerce do debate da segunda fase da questão alemã em África. O débâcle do poder colonial em África tem as suas origens sobre tudo na perda da autoridade religiosa, isto é, na desconfiança da ideia e do desejo do Deus universal, o Deus que canta e fala a língua judaico-cristã, já que no plano político a autoridade consistia simplesmente no desequilíbrio das forças, entre o colonizado e colonizador.
É a morte da religião cristã e a sua desilusão que vai causar a grande reviravolta da concepção que as colónias tinham para com os colonizadores. Os pais das independências africanas souberam explorar aquilo que Hannah Arendt considera ser um “erro das correntes autoritárias do pensamento político crerem que a autoridade pode sobreviver ao declínio da religião institucional e à ruptura com a continuidade da tradição…. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começam a vacilar”[2].
Nesta perspectiva, também se coloca a questão da interpretação da Profissão de fé cristã pelos africanos. Impunha-se a razão saber se a Profissão de fé cristã devia ser entendida como uma opinião ou como uma decisão existencial. “Jave, teu Deus, é um Deus único” que não admite outros deuses para além dele. A mesma interpretação também exigia que se fizesse uma diferenciação entre a ideia da concepção de um Deus local (numem locale), visto num plano espacial e a concepção de um Deus pessoal (numem personale) visto num plano de Eu Tu[3]. Esta dicotomia entre apetência em se sentir de forma natural a encarar e a viver a divindade através dos movimentos cíclicos que conhecemos e reconhecemos, e a introdução de um movimento religioso vindo de fora e introduzido por estranhos vai acabar por permitir o choque entre a religião cristão tipicamente colonial com os ideias da independência. Por isso, a questão será: perante tudo isso, isto é, perante o que vivemos e vimos na Europa com o problema alemão, a nossa religião tem ou não razão de existir e somos ou não superiores aos europeus?
É obvio que à primeira vista seria fácil dizer, a nossa religião tem razão de sobra para existir e somos superiores. Nós nunca faríamos uma coisa dessas. Porém, a resposta foi muito comedida. Não somos nem superiores nem inferiores. Somos gentes à parte, gente com uma identidade que merece ser olhada com dignidade e respeitada pelo valor que tem. Foi portanto neste pressuposto com base no fracasso da Europa com o problema alemão que vai nascer verdadeiramente a ideia consciente da independência em África. No entanto, muito cedo os africanos depararam com uma dicotomia que até hoje lhes é fatal. Trata-se da relação entre o discurso e acção em política. Como vestir a pele de um bom político e ser ao mesmo tempo um bom africano? Desde logo esta questão levanta um outro problema. A questão entre o discurso e acção traz à ribalta o problema da identidade. Esta identidade que os africanos descobriram sobretudo em contacto com os europeus. Será que todo africano é africano? Será que os africanos têm uma referência comum tirando a colonização, a escravatura e a pobreza? No seu livro “A ideia da Europa”, George Steiner oferece-nos um testemunho um tanto quanto chocante mas que não deixa de ser menos verdade no que diz respeito à questão da identidade africana. Relata uma conversa que teve na África de Sul com um uma pessoa ligada à ANC em pleno apartheid. Na pergunta, como é possível? Vocês não tocaram em nenhum branco? Vocês são treze por um? Um dos chefes da ANC diz: eu posso responder: Os cristãos têm os Evangelhos, vocês, judeus têm o Talmude, o Antigo Testamento, o Mishnah, os meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das Kapital. Nós, negros, não temos nenhum livro.”[4]
Nós não temos nenhum livro, esta é uma grande verdade. A África nunca conseguiu definir a sua identidade nem a nível interno nem a nível externo. A querela da identidade africana no amanhecer das independências faz jus a este desabafo do interlocutor de George Steiner. A identidade africana nunca foi uma questão de unanimidade, pois não existindo tinha que ser criada e, sobretudo, o acto da sua criação tinha que ser um acto de inteligência. A este respeito, o presidente Léopold Sédar Senghor do Senegal, parece ser o único líder africano entre os pais das independências a ter percebido isso. Assim, com o movimento a “Negritude e Humanismo”, Senghor, longe de fazer uma proclamação tribal de África, dá uma resposta política alternativa ao Conciencismo de N´krumah, à Autodependência de Nyerere e à Autenticidade de Mobuto[5].

A “Negritude e o humanismo” de Senghor, não vêm reclamar só o espaço da identidade negro-africano, como também o próprio papel do homem africano na história da humanidade. A este respeito, vai elaborar um paralelismo histórico entre a rainha de Saba, o rei Salomão e o povo judeu, para explicar a participação do homem africano na redenção da humanidade. Senghor afasta assim a África de um certo cantonismo tribal e lança-a para o centro do mundo e da humanidade sem que ela tenha que perder aquilo que para ela é essencial para a sua identidade.
Contudo, a interpretação da Negritude por parte de Senghor vai conhecer grandes contestações de muitos intelectuais africanos. Por exemplo, Frantz Fano reagirá duramente ao prefácio do livro de Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie negre d’expression française et malgache, feito por Sartre. Partindo da base de que a Negritude caracteriza-se pela “negação”, “pela recusa do outro” e pela “africanização do ser” e pela revelação e valorização da cultura africana e afro-americana, Frantz Fano não compreenderá porque razão Sartre terá escrito o que escreveu sobre a Negritude.

“A Negritude aparece como o tempo fraco duma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco é a tese; a posição da Negritude como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este momento negativo não tem suficiência por ele mesmo e os negros que o usam sabem-no muito bem; eles sabem que ele visa a preparar a síntese ou a realização humana numa sociedade sem raças. Assim, a Negritude é para ser destruída, é passagem e não termo e nem o fim último”.

A cólera de Frantz Fano está assente sobretudo no facto de Sartre pensar que a Negritude não tem suficiência por si mesmo e que enquanto movimento é chamado à destruição e que não passa de um meio, de um instrumento da contingência em vez de um produto finalístico. Poucos são os revolucionários africanos que não tiveram a mesma reacção e o mesmo sentimento que Frantz Fano. A confusão porém reside no termo negatividade usado por Sartre. Ao empregar esta expressão, Sartre faz apelo a uma conjuntura da filosofia espiritualista de Hegel. Com efeito, para Hegel, o Espírito também é “negatividade”, bem como a Liberdade e a Consciência, ou seja, tudo o que se opõe ao imediato.

“Sartre faz explicitamente apelo à dialéctica hegeliana, processo no qual um primeiro momento, a “tese”, suscita necessariamente o seu contrário, a “antítese”, a luta seguinte fazendo aparecer um terceiro termo, a “síntese”, que conservará as perfeições dos dois primeiros termos e fará desaparecer as suas imperfeições. Ao momento superior, Hegel chama Aufhebung - do verbo aufhaben, que significa por vezes ultrapassar, suprimir e conservar! O “momento negativo” do processo não é portanto uma oposição estéril qu se contentaria em negar a tese sem nada lhe levar de positivo e seria destinado a desaparecer pura e simplesmente depois da luta. Ao contrário, ele leva qualidades novas, não contidos no primeiro termo, e que ele impusera, pois eles serão conservados na síntese. Negar a negação para Hegel, não significa rejeitá-la, como no tribunal se rejeita uma queixa, mas terminar a querela reconhecendo os direitos respectivos das partes e reconciliando-as“[6].

Com efeito, Jean Paul Sartre já tinha estado numa outra polémica em relação à África ao afirmar que havia uma essência negra, afirmação aliás que partilha com Senghor. Em 1967, numa tese de doutoramento de Lilyan Kesteloot, esta afirmação será questionada e posta em causa pela investigadora na tese (Les écrivains noires de langue française: naissance d’une litterature)[7]. Pois, se se admitir que há uma essência africana dir-se-ia o mesmo para de uma essência branca, amarela…, algo que segundo Manuel Ferreira, a antropologia moderna desmente categoricamente. A resposta de Lilyan à Sartre é de que as diferenças humanas que se aceitam são aquelas que decorrem da cultura no sentido amplo da palavra e não aquelas vistas no prisma racial e segundo ela, a raça não tem nada a ver com a Negritude! A essência do negro não é em nada diferente da essência de um branco. Lilyan recusa também o facto de Sartre pensar que com base na dialéctica hegeliana, tese, antítese e síntese e uma vez adquirida a liberdade a partir da libertação nacional com a destruição do colonialismo, a Negritude deixaria de ter razão para existir. Segundo ela, se a Negritude é uma forma de estar no mundo negro, esta condição nunca se viria a alterar com o desaparecimento do Outro, isto é, do colonizador.
Todavia, Sartre tinha razão na sua afirmação uma vez que a Negritude representava duas correntes de pensamentos: uma que tinha a ver com o carácter cultural e valorativo do mundo africano e outra que representava a contestação política da colonização. Ora segundo Sartre, esta segunda característica deixaria de ter razões de peso para existir com a aquisição das independências, as independências significariam ausências de razões para formular as mesmas criticas; porém, a cultura e a valoração africana manteria intacta e inquestionável. Contra o ritmo e contra a visão dos pais das independências, muitos intelectuais africanos acabariam por apoiar a tese de Sartre entre eles, o premio Nobel nigeriano, Wole Soynka. Questionando uma vez num simpósio, Soynka respondeu lapidarmente, “Eu penso que não é necessário que um tigre corra de todos os lados para proclamar a sua tigritude… é um pouco desleal”. A este respeito, J. Jahn conta que numa conferência que ele mesmo registou em banda sonora em Berlim em 1964, Soynka terá dito:

“Eu dizia: “O tigre não proclama a sua tigritude, um tigre salta.” Noutros termos: não fica a dizer: Eu sou um tigre”. Quando se passa lá onde ele está e agente dá conta do esqueleto de uma gazela, então ficamos a saber que algum tigre teria andado por ai…”[8].

A questão portanto que se pretende demonstrar é que a Negritude enquanto facto, não foi inventado. Ele existe. Trata-se agora de tentar libertá-la do ambiente sufocante onde se encontra a penar na imagem do poder colonial, é por isso que o “movimento da Negritude não poderia ter criado a Negritude, mas sim revelar a Negritude ao mundo, impondo o seu reconhecimento como valor universal” da expressão cultural africana. Daí que efectivamente Sartre tinha razão ao prever que a Negritude enquanto simbologia política deixaria de ter razões de existir com as independências.
Contra Senghor e contra Sartre não faltaram personalidades africanas da área da política e da cultura que atacaram duramente o conceito de Negritude que os dois defendiam; entre eles destacam-se o presidente Sékou Touré e o professor Stanisllas Adotevi. Senghor é sobretudo atacado pelos dois por ter preferido esta frase: “Se a razão é helénica, a emoção é negra”, mais tarde tentado responder aos seus detractores dirá: “O negro não é desprovido de razão como me acusam de tê-lo dito. Mas a sua razão não é discursiva; é sintética (…): A razão europeia é analítica pela utilização, a razão negra intuitiva pela participação”[9].


“É certo que a Negritude, enquanto manifesto cultural e político mobilizador, transformou a identidade social cultural dos povos negros numa arma de emancipação e num projecto de renascimento. Ela lutou contra o euro centrismo, o racismo e os preconceitos, a incompreensão e arrogância das potências colónias triunfantes; ela rejeitou a aculturação, a assimilação e alienação, dessacralizou o paradigma cultural ocidental, até então considerado como um critério universal de referência, afirmou vigorosamente o direito à diferença e familiarizou os Negros com a noção ainda nova do relativismo cultural”[10].


A teoria da Negritude também abriu caminho a outros tipos de teoria em África como por exemplo, a africanidade e a arabidade. Assim, desde a fundação da O.U.A[11] em 1963, que alguns líderes africanos tendo-se apercebido da dificuldade crescente de uma identificação continental em relação ao exterior, decidiram criar um conceito que oferecesse a unidade do continente não só a nível interno como também externo; foi assim que surgiu o conceito de africanidade, que procurava representar “o conjunto dos pontos comuns às diversas culturas africanas” procurando deste modo deixar de lado as pequenas grandes diferenças para exaltar a “identidade fundamental” definindo-se assim em oposição à Negritude senghoriana.
Assim, ao defenderem a africanidade contra a Negritude, alguns dirigentes e intelectuais africanos quiseram agradar e prestar homenagem aos árabes africanos ainda que isso implicasse guerra aberta contra alguns intelectuais e dirigentes políticos da África negra. “Alguns vêem na Negritude uma doutrina de exaltação, defensiva e racista, de um património cultural de discutível conteúdo, porque globalizado e caracterizado pelo espelho deformado dos etnólogos europeus que definiram e interpretaram os seus dados de base”[12]. Contudo, a tentativa de rejeição da Negritude pela africanidade e arabidade não foi consequente, uma vez que as duas teorias apresentavam muitas lacunas ideológicas e de sustentabilidade. De um lado, o conceito de africanidade não diferia no fundo com aquela apresentada pela Negritude e de outro lado a questão da arabidade era contraditória já que em África os árabes africanos se consideravam mais árabes que africanos e no seio da comunidade global árabe procuravam exaltar a sua africanidade ou a sua Negritude. Tudo isso fez com que os dois conceitos deixassem de ter o peso político que tem por exemplo a Negritude.
Se é verdade que o presidente Senghor conseguiu ganhar a batalha ideológica em relação aos seus pares, não é menos verdade que a Negritude e o humanismo não se conseguiram fincar como instrumento da identidade que caracteriza os africanos ou negro-africanos. Assim, a África para além de não resolver o problema da sua identidade, ainda tem por resolver o problema do discurso e acção em política. À par o problema da falta de intrusão entre o discurso e acção na política africana, está também o facto de os Estados africanos serem países à procura do moderno conceito da nação com enfoque para uma simbiose sobre a composição étnica, cultural e religiosa no continente.
Segundo autores como Hannah Arendt, o discurso e acção revelam o quanto o homem depende dos outros[13]. Em política, a má gestão desta dependência pode revelar-se catastrófica. Na África dos pós independência, poucos líderes conseguiram elaborar um discurso que permitisse o continente conquistar o mundo e sair do gueto de inferioridade. Este facto tem a ver com o alheamento por parte dos pais fundadores das independências, da virtude política e da grandeza de alma, adjectivos segundo os antigos, indispensáveis para qualquer homem que ambicione desenvolver ou fazer uma boa política. Este handicape fez com que a política concebida no continente fosse à partida uma política sem ambição, já que lhe faltava o principal motor político, isto é, a virtude.
Encurralado entre a opção pelo capitalismo e o marxismo leninista, o continente fechou-se numa espécie de espírito de revolta e de vingança contra tudo o que vinha do Ocidente. Na Guiné-Bissau, foram queimados carros e muitos outros materiais deixados pelo colono português, pois segundo os novos senhores do poder no país, aqueles carros e outros objectos representavam o espírito do colonizador. Portanto, tudo devia ser queimado e esperar por aquilo que ia chegar de Boé[14]. Este fechamento também se revelou nefasto para os africanos, pois se antes lhes faltava a capacidade discursiva, com o fechamento, abortaram todas as hipóteses da elaboração do discurso. Com a morte do discurso também mataram a capacidade de acção, uma vez que qualquer acção pressupõe partilha e pluralidade, ora nenhuma destas coisas se faz fora de um espírito discursivo maduro. Este encurralamento deixa os africanos num impasse, quase que, num beco sem saída, mas reconhecer este impasse ou encurralamento, seria admitir que estavam a ser menos capazes do que os colonizadores e isto não era bom para o valor que queriam dar às independências. Assim, volta novamente em discussão a questão da identidade política africana. Os críticos da doutrina Senghor encontrarão nela uma beleza linguística mas sem um sustentáculo da identidade que se quer para África; entre eles estavam os presidentes Ahmed Sékou Touré da Guiné Conakry e Félix Houphouet-boigny da Costa do Marfim. Tendo posto em causa a doutrina Senghor, os dois homens mostraram estar dispostos em apoiar mais as teses do presidente da Tanzânia, Julius Nyerere[15] e do presidente do Zaire, Mobuto Sese Seko[16]. Mas sendo estas teses construídas num idealismo marxista e em “trabalho” rudimentar, muito cedo se deram mal.
Numa linguagem de John Locke e de Hannah Arendt, diríamos que as teses de Nyerere e de Mobuto se situavam mais numa espécie de “ labor de seu corpo” do que no “trabalho de suas mãos”, em outras palavras, a falta de uma finalidade consistente fez com que as duas teses se limitassem a um consumo de sobrevivência quer em termos materiais quer em termos políticos. Pois “o que o labor produz, ao contrário do trabalho, destina-se, portanto, ao consumo ou, por outras palavras, à sua destruição, ao tempo instantâneo”[17]. A falta de articulação entre o discurso e acção em política afectou também a própria tentativa da conquista do espaço público a nível dos políticos africanos, uma vez que o espaço público exige uma relação de pluralidade. Ora, “o novo animal laborans que não só está isolado num contexto público, mas ainda desacompanhado em termos privados”[18], não podia aceitar as regras de igualdade que o espaço público ditava. Em parte, porque estas mesmas regras eram contrárias à concepção da natureza da política do homem africano, sinal de que, apesar de reclamar a independência, não estava preparado para viver a política na independência segundo os valores tradicionais da política deixados pelo colonizador. Por exemplo, em muitos casos, a simples contestação de um governo serviu para uma espécie de catalizador para várias guerras civis africanas; sendo que em muitos casos isso tinha a ver com o vazio político deixado pelos colonizadores, obrigando aos africanos à uma passagem da transição imediata e radical para a própria perdição das instituições políticas e sociais.
Este entrave fez com que o político africano perca o espaço público antes mesmo de o conquistar e, consequentemente esta perda vai reforçar a nova forma de escravatura através de actuação do animal laborans. Os exemplos das doutrinas de Nyerere e de Mobuto são testemunhas da nova forma de escravatura, uma vez que eram teorias de produção e de reflexão feitas com o intuito de subsistência e de sobrevivência. Este ciclo vai proporcionar um casamento entre o totalitarismo e os regimes africanos, que vai desde a destruição do espaço público à aniquilação do espaço privado, uma vez que:

“O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera pública da vida, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como uma forma de governo é novo no sentido em que não se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada”.[19]

Isto vai desgastar profundamente a imagem da capacidade de liderança dos líderes africanos. Como demonstrar ao mudo que a África tem condições para ser independente? E como esconder a brutal ineficiência dos seus líderes e a consequente falta de projecto político? Por exemplo em relação à Guiné-Bissau, entre os três principais objectivos traçados pelo PAIGC, só um deles foi conseguido. O partido de Amílcar Cabral traçou três objectivos que eram: conseguir a independência do país, conseguir o desenvolvimento e conseguir a unidade de todos os povos da Guiné-Bissau independentemente da cor da pele e de fronteira. Os dois últimos objectivos não foram conseguidos e não estão a ser conseguidos. São situações como as da Guiné que vão obrigar os africanos a adoptarem uma guerra ideológica que anda entre a persuasão política e a verdade política.
[1] Victor Ramalho, África que futuro? P. 18, Edições Cosmos.
[2] Hannah Arendt, A promessa da Política, p. 48.
[3] Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo; p. 88.
[4] George Steiner, A ideia da Europa; p. 41.
[5] Engilbert Mveng, A identidade africana; p. 112.
[6] Manuel Ferreira, O discurso no percurso africano I; p. 61.
[7] Opus. Cit.
[8] Opus. Cit. P. 63.
[9] Opus. Cit. P. 65.
[10] Introdução à cultura africana, vários autores; p. 15.
[11] Organização da Unidade Africa.
[12] Introdução à cultura africana; p. 21.
[13] Margarida Amaral, Os mundos da Razão, Esfera do Caos; p. 43.
[14] Local onde o partido de Amílcar Cabral proclamou a Independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973.
[15] A auto dependência
[16] A autenticidade
[17] Opus. Cit. P. 67.
[18]Opus. Cit. P. 68.
[19] Margarida, Amaral Citando As origem do Tatalitarismo; p. 69.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

XV DOMINGO DEL TIEMPO ORDINARIO, "B" (ÁNGEL. M.B)

Aún resuena en nuestros oídos la expresión paulina que se proclamaba en la Liturgia del domingo pasado: “Te basta mi gracia; la fuerza se realiza en la debilidad” (2Co 12,9), cuando, de nuevo, la Palabra de Dios, que nos acompaña en este tiempo de estío, reitera que la condición del mensajero no es la estrategia, ni el poder, ni el dinero, ni la seguridad, sino la total confianza en el que le envía.

En la primera lectura se presenta a Amós, quien reconoce que no es profeta ni hijo de profeta, sino pastor y cultivador de higos; no es de casta distinguida, pero el Señor lo quitó de pastorear el rebaño, como hará con David, y lo envió: “Ve y profetiza a mi pueblo Israel” (Am 7, 15).
En el Evangelio que se proclama este domingo, aparece Jesús enviando a los Doce en unas condiciones menesterosas: sin pan, ni alforja, ni dinero, ni túnica de repuesto, pero con autoridad sobre los malos espíritus, con bastón y sandalias (cf Mc 6, 7-9).

Por las referencias bíblicas señaladas se constata que Dios sigue llamando a quienes constituye en mediaciones para anunciar la conversión, y para que se manifieste de dónde les viene la fuerza, tanto Amós como los Apóstoles experimentan por una parte la debilidad y por la otra, la fuerza del Señor.

El salmo, como nexo interleccional, indica la actitud necesaria y adecuada ante la posibilidad de la llamada y del envío que Dios quiera comunicarnos: “Voy a escuchar lo que dice el Señor”, con la confianza en la providencia y en la respuesta fecunda: “El Señor nos dará la lluvia y nuestra tierra dará su fruto” (Sal 84).

En este contexto, te invito a que personalices la segunda lectura, de la carta de San Pablo a los Efesios, en la que se nos explicitan los beneficios recibidos de la creación, de la redención y de la santificación, y tomes la decisión confiada que te sugiere.

Dios te ha elegido en la persona de Cristo, antes de crear el mundo, para que seas santo e irreprochable ante Él por el amor. Te ha destinado a ser su hijo. Has recibido la redención, el perdón, los tesoros de su gracia. Has sido marcado por el Espíritu Santo (cf. Ef 1, 3-14).

No importa que no lleves pan, Cristo se ha ofrecido como Pan de vida; ni que no lleves túnica de repuesto, Jesús nos dejó la suya al pie de la cruz. No te importe no llevar dinero, el mayor tesoro es la confianza interior y la certeza de la Providencia. La mejor alforja es la que cada día te dispone el Señor con su promesa de acompañamiento. Apóyate en el bastón de la cruz, y cálzate con las sandalias del amor. Recuerda que el padre de la parábola entrega al hijo pequeño túnica, sandalia, anillo, y le ofrece un banquete. Nunca ganaremos a Dios en generosidad.

sábado, 4 de julho de 2009

O CONFLITO ENTRE O DISCURSO E ACÇÃO NA POLÍTICA GUINEENSE. O PROBLEMA DA "PARRESÍA"

1. Discurso e acção
O objetivo de esta intervenção (no Encontro de ética e filosofia política organizada pelo IEP, UL, UN, Universidade de Coimbra e a Universidade do Minho em Braga no dia 19 de Junho) é de tentar explicar a origem da instabilidade política e militar na Guiné. Tentar saber o que está na base das constantes tragédias políticas que o pais tem vindo a oferecer ao mundo. Depois da descoberta da origem do conflito, queremos também discutir se, a tradição guineense é ou não compatível com a teoria da liberdade política. Estas duas perspectivas conduzem-nos ao momento grego da fundação da política e do político. Compreender o conflito político, significa compreender e pôr em sintonia a palavra enquanto instrumento da racionalidade e a violência enquanto instrumento apolítico e antípoda da racionalidade (cfr. o julgamento de Orestes). A Guiné é neste momento um laboratório onde este estudo pode ser feito com mais claridade recorrendo-se aos gregos.
Na Grécia antiga, o uso da palavra era muito privilegiado, era um convite à racionalidade, era um convite ao pensamento. A estrutura educativa montada visava sobretudo permitir ao cidadão político familiarizar-se com os vários tipos de discursos. Valorizava-se muito a habilidade e a apreensão do discurso persuasivo, convencer a través da palavra. Na Guiné-Bissau, o caminho fez-se no inverso. A palavra enquanto elemento gerador do discurso tem servido para reprimir e para desencorajar todo o tipo de acto que implicasse a racionalidade, ou a expressão de quem não opina “como eu”[1]. Como em todas as sociedades pobres, o brilho intelectual pode ser um motivo de perseguição e de isolamento. Este temor da represália social chaga a fazer muitas vezes nas aldeias, que algumas pessoas prefiram retardar o seu desenvolvimento escolar e intelectual para não perder o contacto dos amigos e para não cortar o laço social da comunidade. O desenvolvimento das habilidades pessoais da racionalidade pode ser muito perigoso, já que isto implicaria estar numa posição de destaque e numa diferenciação em relação aos demais. Em outras palavras, isso leva a pessoa em causa a ser o único estranho no meio de uma comunidade homogênea. O que contrasta com o conceito do discurso e da racionalidade na Grécia antiga; segundo Hannah Arendt, em “A promessa da política”, a actividade mais importante de uma vida livre deslocava-se de acção para o discurso, dos actos livres para as palavras livres. Havia, portanto, uma diferença de princípios entre a ideia de acção e a ideia do discurso. No entanto, Arendt lembra-nos que esta diferença foi sendo ganha progressivamente, uma vez que na época de Homero e mesmo antes dele, havia uma fusão entre o discurso e a acção, isto é, “o autor dos grandes feitos tem de ser sempre e ao mesmo tempo o autor de grandes palavras – não só porque são necessárias as grandes palavras para acompanhar e explicar os grande feitos que de outro modo cairiam na mudez do esquecimento, mas também porque o próprio discurso era considerado desde o início uma forma de acção”.[2] Arendt toma como exemplo da suplantação da acção no discurso, o desespero de Platão perante a condenação de Sócrates.
A persuasão falhada que poderia constituir um elemento essencial para inocentar Sócrates deixou Platão chocado. O choque de Platão segundo Arendt, consistia no facto de Sócrates não ter podido persuadir a Peitho, a deusa da persuasão, “uma vez que era em persuadir a peithein que consistia a forma especificamente política do discurso, e uma vez que os atenienses se orgulhavam, ao contrário dos bárbaros, de conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma do discurso e não da compulsão, consideravam a retórica a arte da persuasão, a mais elevada e verdadeira forma de arte política”[3]. Em Protágoras[4], Platão mostra como a arte do discurso pode ser libertadora e como também esta arte é distinta do pensamento das massas, já que implica a imparcialidade, isto através de uma verdadeira compreensão do sentido da palavra neutralidade. Platão mostra ainda nesta passagem de Protágoras, como um bom discurso nunca nos pode deixar indiferentes e, sobretudo, como um verdadeiro discurso se distancia não só de uma disputa física, como também de uma possível vulgaridade[5]. Na vida política guineense, a palavra e o discurso nunca foram usados como um elemento de articulação ou ainda como arte de persuadir o outro através de uma via racional. A palavra sempre foi usada como a conclusão de uma ordem, de um comando, “o chefe quer isto assim”; deste modo, a palavra é vista como a personificação do poder do chefe não só no domínio público como também no domínio privado. O jogo da persuasão tem sido circunscrito à acção violenta, de modo que este hábito também foi arrastado para a política, contrariando assim o conceito da retórica ou do discurso na Grécia antiga em que figurava como a verdadeira forma da arte política.
O desenvolvimento da retórica ou do discurso permite planear o castigo, a punição não como a forma de libertar-se de um delito, mas como a forma de aprendizagem com vista a garantir um boa convivência na cidade, ou na política[6]. Segundo Platão, a boa convivência na política ou na cidade não dependerá necessariamente da coerção punitiva, mas antes da consciência da obrigatoriedade da justiça, isto é, a justiça deve ser o ponto de união na cidade dos diferentes dons dos cidadãos, já que é não só a principal virtude política, como também humana[7]. No caso da política guineense, isto levanta um problema, já que a personificação do poder dos chefes exige, de uma certa forma, a aniquilação dos dons não só dos membros do governo como também do cidadão particular. Aqui o princípio do governo é um principio despótico dissimulado numa democracia eleitoral; há necessidade de estabelecer um vizir[8], já que o “soberano” não pode fazer tudo, e esta necessidade transforma-se numa lei fundamental cobrindo assim a ignorância política do “déspota”, através da instauração do medo que se executa nas acções comandadas pelo “déspota”, e neste caso concreto, no presidente sufragado por uma democracia eleitoral[9]. Aqui outra vez encontramos uma assimetria entre a política no pensamento clássico grego e a política na Guiné da democracia eleitoral; para Platão como para Aristóteles, o tirano era visto como “um lobo em forma de gente”, uma vez que o seu poder para coagir era inviável para os fins políticos, “o seu poder de coação era incompatível não só com a liberdade dos outros, mas também com a sua própria liberdade. Onde quer que ele governasse só existia um tipo de relação, a do senhor com os seus escravos”[10] e isto para os gregos não era o exercício de liberdade, já que para eles a coação é um acto puramente anti-político.
Para Platão, toda a afirmação política correta implica uma anterior discussão[11] o que por sua vez impede que o governante se sinta como salvador e protetor e sobretudo que considere o povo como o seu escravo[12]. Isso marca de uma certa forma o limite do espaço público e favorece a salvaguarda dos direitos do indivíduo, basta olhar para o confronto entre Hémon e o seu pai Creonte em defesa de Antígona, um choque entre a consciência individual e o bem estar público protagonizado por Antígona e o rei Creonte[13]; também neste confronto, Hémon procura mostrar ao seu pai que ninguém pode desempenhar bem a sua função incorrendo no desrespeito da justiça e que qualquer ofensa da justiça divina implica consequentemente a desvalorização do direito do indivíduo[14]. Tudo isso mostra como os antigos concebiam a vida política e o discurso como o acto mais marcante da vida política e do cidadão. Assim, uma comunidade política justa era aquela onde o discurso e a discussão eram feitos constantemente para o bem da polis[15]. Como o fim da política é facultar uma vida boa aos seus cidadãos, também o objectivo do discurso é proporcionar a verdade aos ouvintes é por isso indispensável que quem tem este oficio o faça com honestidade, sabendo que se não o faz pode levar muita gente na inverdade e pode comprometer a boa vida da cidade e da política[16]. No caso guineense, o discurso é feito para repostar ou para dramatizar algo.
Ora, numa outra perspectiva, no olhar de Max Weber, podemos considerar ou interpretar esta verdadeira forma de arte política de que Hannah Arendt nos fala como uma vocação à função política.
O conceito da política que Weber nos oferece, é um conceito que inclui o uso da força. A política como vocação para usar a força, em outras palavras, a política como a expressão do Estado. Se é verdade, diz Weber que outras pessoas ou instituições podem usar a força física, não é menos verdade no conceito do Estado moderno, que estas pessoas só podem usar esta força física se o Estado o permitir[17], já que ele é a única fonte de direito autorizada a usar a violência contra o indivíduo para o próprio bem deste indivíduo.
Isso levanta por um lado a questão da identidade da autoridade e o reconhecimento da própria autoridade e por outro a legitimidade em lutar para garantir e conservar o poder. Ora como diz Weber, “Quem participa activamente na política luta pelo poder, quer como um meio de servir a outros objectivos, ideais ou egoístas, quer como o ‘poder pelo poder’, ou seja, a fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pelo poder”[18]. Isso implica muitas vezes a invasão da esfera pública à esfera privada e isso pode ainda implicar num sentido abusivo, transformar a vida do cidadão numa coisa do Estado. A invasão da privacidade, isto é, da esfera privada, começa com a limitação da liberdade de opinião e com a liquidação da acção enquanto o acto gerador da espontaneidade. Na Guiné, o totalitarismo quer do presidente em exercício, assim como o das cúpulas militares, destruiriam e impediram o desenvolvimento de acção enquanto o movimento da espontaneidade e da liberdade.
Há pouco quando abordámos a questão da legitimidade da violência do Estado, falamos da questão da identidade da autoridade e do seu reconhecimento. Reconhecer esta autoridade significa explicitamente que vamos aceitar que em algum momento da nossa vida social seremos obrigados a perder a nossa liberdade negativa, isto é, aquela faculdade de poder estar e ser sem a coerção de terceiros. Ao reconhecer a legitimidade da violência do Estado, nós convidamo-lo a proteger-nos dos outros e, consequentemente, também a proteger estes outros de nós mesmos. Acontece que no panorama do discurso e da acção na política guineense, o Estado não é visto como protector nem pelo cidadão e nem pelo burocrata que exerce as funções políticas, uma vez que o burocrata, o político, aproveitou o desaparecimento da espontaneidade para instaurar e legitimar a sua autoridade através de um ontem eterno de que nos fala Max Weber. No caso guineense, o ontem não deveria ser chamado ou tratado por eterno, já que o poder político vigente no país tem um começo; porém o poder foi ganhando uma eternidade legítima através da imposição dos senhores da guerra e de acordo com as novas regras da democracia eleitoral. A legitimidade dos senhores da guerra cresce ainda mais quando todos de uma forma ou outra interiorizam a consciência do medo de enfrentar estes senhores. Deste modo, quanto mais cresce o medo, mais o cidadão se disponibiliza a obedecer, em outras palavras, mais ele aumenta a legitimidade dos políticos. E, segundo Weber, esta obediência e esta legitimidade já não dependem só da lei, ou seja, os homens não o fazem porque está prescrito na lei, mas porque eles acreditam no chefe independentemente da exterioridade da lei ou do medo do não comprimento desta mesma lei. Esta crença acentua também a perda do verdadeiro significado da esfera pública.
Como diz Arendt, “O que impediu que a polis violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez considerar sagrados os limites que cercavam cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o facto de que, sem ser dono da sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse”[19]. Em África e em particular, na Guiné-Bissau, a política do pós independência actuou exactamente ao contrário daquilo que acabamos de ler na perspectiva de Hannah Arendt. Violou o espaço privado dos seus cidadãos de cada vez que cobrava os impostos à noite. Com esta actuação, o Estado fundiu num só domínio a esfera familiar e a esfera pública e consequentemente, desvirtualizou a verdadeira imagem daquilo que deveriam ser actuação política e a acção política. Com isso, o Estado para além de ter desvirtualizado o conceito da política e da acção política, também roubou ao indivíduo o seu acto pré-político da libertação, isto é, despojou o chefe da família do seu poder de exercer a violência sobre os outros membros da família. Se por um lado esta desestruturação da família contribuiu para reforçar o poder do Estado, por outro, também contribuiu para o seu próprio descrédito, já que ao desmembrar o núcleo familiar, ele actuou directamente contra a mais sagrada concepção da tradição. E aqui mais uma vez podemos citar Arendt para reforçar e esclarecer a nossa posição:
“Sem a vitória sobre as necessidades da vida na família, nem a vida nem a “boa vida” é possível; a política, porém, nunca visa a manutenção da vida. No que se refere aos membros da polis, a vida no lar existe em função da “boa vida” na polis”[20].
A política nunca visa a manutenção da vida, o que no contesto africano, representa um tremendo atentado contra a tradição e contra o costume. E mais, o facto da vida no lar existir em função da boa vida na polis é também uma actuação contra a política no seu confronto com a concepção familiar africana. A polis guineense não apresenta uma imagem da “boa vida”, ela é o reflexo da paralisia de todo o país. Uma estrutura política ou militar desmembrada e, cujo desmembramento se faz sentir directamente nos lares através das lutas pela tentativa de emancipação; um confronto directo entre o patriarca e os outros membros da família, particularmente os membros do género feminino. Pois uma vez que o patriarca não tem poder de compra, o dinheiro que vai entrar para o rendimento da casa e da despesa familiar terá de ser fruto ou do trabalho doméstico da mulher ou do namoro/prostituição política e institucional da filha. Para o patriarca, esta situação é humilhante mas é uma realidade à qual ele está confinado pela nova realidade política. Preferir que os outros filhos não morram de fome ou revoltar-se contra aqueles que indubitavelmente dormem com a sua filha e provavelmente com a sua mulher? Esta é a dura realidade que a debandada política trouxe aos lares guineenses particularmente aqueles lares das cidades; e esta é também umas das razões para que a política seja desacredita no continente. De mesmo modo, a família que era vista antes como um dos rostos do despotismo é ela agora mesma absorvida pelo despotismo político e social e é justamente na sua condição de inferioridade que ela nunca deixa de rogar pragas aos políticos.
Assim, a actuação política do Estado é vista como um discurso da força em alternativa ao poder, isto é, ao poder tradicional, ao poder familiar. Mas apesar do uso da força do poder político, ele no fundo nunca conseguiu destruir cabalmente o poder moral e é justamente este resto do poder moral, um resto que não é negligenciável, que se recusa a identificar-se com a noção da política e da acção política. E este é um movimento desfavorável à acção e ao discurso político, já que a política enquanto força de comando não passa de um elemento da divisão distributiva, ao passo que a força enquanto a consciência do Eu individual ou colectivo não é divisível. E é justamente aqui que assenta o problema guineense. A tentativa do poder em acabar com tudo e a recusa da força em deixar que tudo se acabe. Este duelo entre o poder e a força reforça a consciência do risco do que pode implicar qualquer participação na vida pública e política do país. E aqui mais uma vez podermos citar Arendt para reforçar a nossa posição:
“Quem quer que ingressasse na esfera política deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade sinal inconfundível do servilismo”[21].
Na Guiné-Bissau, passa-se o mesmo. A política é assim vista como o domínio reservado aos corajosos, uma espécie de vocação à riqueza material e consequentemente à morte trágica. O facto dos políticos africanos fazerem da política a sua fonte de rendimento, transformou ainda mais a função política num lobi muito restrito em que não basta só pertencer a classe dos “senhores de guerra” mas aqueles que fizeram nomes entre os “senhores de guerra” ou entre os influentes sociais e daqueles que se identificam como os verdadeiros filhos de terra. Como diz Weber, “Há dois princípios pelos quais alguém pode fazer da política a sua vocação: viver para a ‘política’ ou viver da ‘política’…Quem vive ‘para’ a política faz dela a sua vida, num sentido interior. Desfruta a posse pura e simples do poder que exerce, ou alimenta seu equilíbrio interior, seu sentimento íntimo, pela consciência de que sua vida tem sentido a serviço de uma ‘causa’… A distinção, no caso, refere-se a um aspecto muito mais substancial da questão, ou seja, o económico. Quem luta para fazer da política uma fonte de renda permanente, vive ‘da’ política como uma vocação, ao passo que quem não age assim vive ‘para’ a política”[22].
O espaço político guineense para além de ser um espaço característico dos “senhores de guerra” também é um espaço onde as pessoas vivem da política e consequentemente vivem em função do rendimento económico, o que contribui amplamente para ignorar a importância do discurso na política, transformando assim a acção do rendimento num movimento que justifica toda a violência material da política. É por isso que na Guiné, “Quem deseja dedicar-se à política, e especialmente à política como vocação, tem de compreender esses paradoxos éticos. Deve saber que é responsável pelo que vier a ser sob o impacto de tais paradoxos. Repito: tal pessoa se coloca à mercê de forças diabólicas envoltas na violência”[23] em que o único limite possível da acção violenta é de sentir-se como o político não só respeitado mas sobretudo temido maquiavelicamente, já que não há encontro entre a parresía política e a parresía ética.

2. A autoridade

A interpretação da palavra autoridade é uma peça-chave para a integração não só da democracia como também para o respeito do poder político e das instituições em África. Compreender a função da autoridade, conduziria a colaborar com ela sem medo e sem preconceito negativo em relação à ela.
Entre os muitos desafios que o país enfrenta, a questão de integração do princípio de autoridade pelo cidadão governado é uma questão básica imprescindível para que qualquer governo possa construir um diálogo produtivo não só com as massas como também com a elite. Só a autoridade credível pode contribuir para a compatibilidade da liberdade política com a tradição. A falta de compreensão da palavra autoridade, primeiro, por quem exerce o poder, e depois por parte de quem obedece ao poder, tem criado graves crises institucionais ao país, relegando-o quase a um plano de ingovernabilidade.
A Guiné-Bissau continua a ser talvez o país mais pré-político do nosso tempo, já que os laços familiares continuam a ter uma importância capital, apesar de uma clara evidência da deterioração no seu confronto com a vontade de ocidentalizar-se. Mas a principal dificuldade para o entendimento do termo autoridade na Guiné tem a ver com, o facto de ela estar muitas vezes associada a violência e a corrupção. A imagem que chaga as pessoas quando se lhes fala de autoridade, não é uma imagem de protecção mas sim de punição e de um certo abuso de poder e de não ter limite para a esfera privado do cidadão. E, nisto também consiste a incompatibilidade com a liberdade política.


BIBLIOGRAFIA

Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2001.
Platão, Protágoras. In diálogos I, Editorial Gredos, 1982, Madrid.
Hannah Arendt, A promessa da Política, Relógio d’Água, 2007, Lisboa.
Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, Relógio d’Água, 2006, Lisboa.
Montesquieu, O espírito das Leis, Martins Fontes, 2000, São Paulo.
Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores, 1963, Rio de Janeiro.
Sófocles, Tragédia, Antígona. Editorial Gredos, 1983, Madrid.

[1] Na Guiné-Bissau, a divergência entre os guineenses e os cabo-verdianos reside sobretudo no facto da “inveja” que os guineenses tinham destes últimos, por um lado, por serem na sua maioria muito mais instruídos que os guineenses e por outro, por serem supostamente amigos dos portugueses. O cabo-verdiano era capaz de produzir um “discurso” e o guineense não, e isso molestava o guineense, o que no fundo levava sempre o conflito entre os dois, uma vez que, contra a racionalidade do cabo-verdiano, o guineense recorria à acção; primeiro para sanar o seu complexo de inferioridade e segundo, para humilhar a racionalidade cabo-verdiana. Quem tiver mais interesse neste assunto poderá fazer uma analises hermeneutica do golpe de Estado de 1980.
[2] Hannah Arendt, A promessa da política; p. 108, Relógio d’Água, Junho de 2007 Lisboa.
[3] Opus. Cit. P. 12.
[4] Protágoras, 317a-b.
[5] Protágoras, 337a-e.
[6] Protágoras, 324a, b-e.
[7] Protágoras, 324e, 325a.
[8] Ministro árabe.
[9] O espírito das Leis, II, 5; III, 9.
[10] Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, pg 119.
[11] A República, 449d.
[12] A República, 463b.
[13] Antígona, 367-8.
[14] Antígona, 744-5.
[15] A República, 450b.
[16] A República, 450d; 451a.
[17] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar Editores, pg 98, 6a edição, 1963. Rio de Janeiro.
[18] Opus. Cit. Pg 98.
[19] Hannah Arendt, A condição Humana, pg 44. Relógio d’Água, Junho de 2001 Lisboa
[20] Opus. Cit. Pg. 51.
[21] Opus. Cit. Pg 50.
[22] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores,Pg 105.
[23] Opus. Cit. pg 150.