1. Discurso e acção
O objetivo de esta intervenção (no Encontro de ética e filosofia política organizada pelo IEP, UL, UN, Universidade de Coimbra e a Universidade do Minho em Braga no dia 19 de Junho) é de tentar explicar a origem da instabilidade política e militar na Guiné. Tentar saber o que está na base das constantes tragédias políticas que o pais tem vindo a oferecer ao mundo. Depois da descoberta da origem do conflito, queremos também discutir se, a tradição guineense é ou não compatível com a teoria da liberdade política. Estas duas perspectivas conduzem-nos ao momento grego da fundação da política e do político. Compreender o conflito político, significa compreender e pôr em sintonia a palavra enquanto instrumento da racionalidade e a violência enquanto instrumento apolítico e antípoda da racionalidade (cfr. o julgamento de Orestes). A Guiné é neste momento um laboratório onde este estudo pode ser feito com mais claridade recorrendo-se aos gregos.
Na Grécia antiga, o uso da palavra era muito privilegiado, era um convite à racionalidade, era um convite ao pensamento. A estrutura educativa montada visava sobretudo permitir ao cidadão político familiarizar-se com os vários tipos de discursos. Valorizava-se muito a habilidade e a apreensão do discurso persuasivo, convencer a través da palavra. Na Guiné-Bissau, o caminho fez-se no inverso. A palavra enquanto elemento gerador do discurso tem servido para reprimir e para desencorajar todo o tipo de acto que implicasse a racionalidade, ou a expressão de quem não opina “como eu”[1]. Como em todas as sociedades pobres, o brilho intelectual pode ser um motivo de perseguição e de isolamento. Este temor da represália social chaga a fazer muitas vezes nas aldeias, que algumas pessoas prefiram retardar o seu desenvolvimento escolar e intelectual para não perder o contacto dos amigos e para não cortar o laço social da comunidade. O desenvolvimento das habilidades pessoais da racionalidade pode ser muito perigoso, já que isto implicaria estar numa posição de destaque e numa diferenciação em relação aos demais. Em outras palavras, isso leva a pessoa em causa a ser o único estranho no meio de uma comunidade homogênea. O que contrasta com o conceito do discurso e da racionalidade na Grécia antiga; segundo Hannah Arendt, em “A promessa da política”, a actividade mais importante de uma vida livre deslocava-se de acção para o discurso, dos actos livres para as palavras livres. Havia, portanto, uma diferença de princípios entre a ideia de acção e a ideia do discurso. No entanto, Arendt lembra-nos que esta diferença foi sendo ganha progressivamente, uma vez que na época de Homero e mesmo antes dele, havia uma fusão entre o discurso e a acção, isto é, “o autor dos grandes feitos tem de ser sempre e ao mesmo tempo o autor de grandes palavras – não só porque são necessárias as grandes palavras para acompanhar e explicar os grande feitos que de outro modo cairiam na mudez do esquecimento, mas também porque o próprio discurso era considerado desde o início uma forma de acção”.[2] Arendt toma como exemplo da suplantação da acção no discurso, o desespero de Platão perante a condenação de Sócrates.
A persuasão falhada que poderia constituir um elemento essencial para inocentar Sócrates deixou Platão chocado. O choque de Platão segundo Arendt, consistia no facto de Sócrates não ter podido persuadir a Peitho, a deusa da persuasão, “uma vez que era em persuadir a peithein que consistia a forma especificamente política do discurso, e uma vez que os atenienses se orgulhavam, ao contrário dos bárbaros, de conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma do discurso e não da compulsão, consideravam a retórica a arte da persuasão, a mais elevada e verdadeira forma de arte política”[3]. Em Protágoras[4], Platão mostra como a arte do discurso pode ser libertadora e como também esta arte é distinta do pensamento das massas, já que implica a imparcialidade, isto através de uma verdadeira compreensão do sentido da palavra neutralidade. Platão mostra ainda nesta passagem de Protágoras, como um bom discurso nunca nos pode deixar indiferentes e, sobretudo, como um verdadeiro discurso se distancia não só de uma disputa física, como também de uma possível vulgaridade[5]. Na vida política guineense, a palavra e o discurso nunca foram usados como um elemento de articulação ou ainda como arte de persuadir o outro através de uma via racional. A palavra sempre foi usada como a conclusão de uma ordem, de um comando, “o chefe quer isto assim”; deste modo, a palavra é vista como a personificação do poder do chefe não só no domínio público como também no domínio privado. O jogo da persuasão tem sido circunscrito à acção violenta, de modo que este hábito também foi arrastado para a política, contrariando assim o conceito da retórica ou do discurso na Grécia antiga em que figurava como a verdadeira forma da arte política.
O desenvolvimento da retórica ou do discurso permite planear o castigo, a punição não como a forma de libertar-se de um delito, mas como a forma de aprendizagem com vista a garantir um boa convivência na cidade, ou na política[6]. Segundo Platão, a boa convivência na política ou na cidade não dependerá necessariamente da coerção punitiva, mas antes da consciência da obrigatoriedade da justiça, isto é, a justiça deve ser o ponto de união na cidade dos diferentes dons dos cidadãos, já que é não só a principal virtude política, como também humana[7]. No caso da política guineense, isto levanta um problema, já que a personificação do poder dos chefes exige, de uma certa forma, a aniquilação dos dons não só dos membros do governo como também do cidadão particular. Aqui o princípio do governo é um principio despótico dissimulado numa democracia eleitoral; há necessidade de estabelecer um vizir[8], já que o “soberano” não pode fazer tudo, e esta necessidade transforma-se numa lei fundamental cobrindo assim a ignorância política do “déspota”, através da instauração do medo que se executa nas acções comandadas pelo “déspota”, e neste caso concreto, no presidente sufragado por uma democracia eleitoral[9]. Aqui outra vez encontramos uma assimetria entre a política no pensamento clássico grego e a política na Guiné da democracia eleitoral; para Platão como para Aristóteles, o tirano era visto como “um lobo em forma de gente”, uma vez que o seu poder para coagir era inviável para os fins políticos, “o seu poder de coação era incompatível não só com a liberdade dos outros, mas também com a sua própria liberdade. Onde quer que ele governasse só existia um tipo de relação, a do senhor com os seus escravos”[10] e isto para os gregos não era o exercício de liberdade, já que para eles a coação é um acto puramente anti-político.
Para Platão, toda a afirmação política correta implica uma anterior discussão[11] o que por sua vez impede que o governante se sinta como salvador e protetor e sobretudo que considere o povo como o seu escravo[12]. Isso marca de uma certa forma o limite do espaço público e favorece a salvaguarda dos direitos do indivíduo, basta olhar para o confronto entre Hémon e o seu pai Creonte em defesa de Antígona, um choque entre a consciência individual e o bem estar público protagonizado por Antígona e o rei Creonte[13]; também neste confronto, Hémon procura mostrar ao seu pai que ninguém pode desempenhar bem a sua função incorrendo no desrespeito da justiça e que qualquer ofensa da justiça divina implica consequentemente a desvalorização do direito do indivíduo[14]. Tudo isso mostra como os antigos concebiam a vida política e o discurso como o acto mais marcante da vida política e do cidadão. Assim, uma comunidade política justa era aquela onde o discurso e a discussão eram feitos constantemente para o bem da polis[15]. Como o fim da política é facultar uma vida boa aos seus cidadãos, também o objectivo do discurso é proporcionar a verdade aos ouvintes é por isso indispensável que quem tem este oficio o faça com honestidade, sabendo que se não o faz pode levar muita gente na inverdade e pode comprometer a boa vida da cidade e da política[16]. No caso guineense, o discurso é feito para repostar ou para dramatizar algo.
Ora, numa outra perspectiva, no olhar de Max Weber, podemos considerar ou interpretar esta verdadeira forma de arte política de que Hannah Arendt nos fala como uma vocação à função política.
O conceito da política que Weber nos oferece, é um conceito que inclui o uso da força. A política como vocação para usar a força, em outras palavras, a política como a expressão do Estado. Se é verdade, diz Weber que outras pessoas ou instituições podem usar a força física, não é menos verdade no conceito do Estado moderno, que estas pessoas só podem usar esta força física se o Estado o permitir[17], já que ele é a única fonte de direito autorizada a usar a violência contra o indivíduo para o próprio bem deste indivíduo.
Isso levanta por um lado a questão da identidade da autoridade e o reconhecimento da própria autoridade e por outro a legitimidade em lutar para garantir e conservar o poder. Ora como diz Weber, “Quem participa activamente na política luta pelo poder, quer como um meio de servir a outros objectivos, ideais ou egoístas, quer como o ‘poder pelo poder’, ou seja, a fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pelo poder”[18]. Isso implica muitas vezes a invasão da esfera pública à esfera privada e isso pode ainda implicar num sentido abusivo, transformar a vida do cidadão numa coisa do Estado. A invasão da privacidade, isto é, da esfera privada, começa com a limitação da liberdade de opinião e com a liquidação da acção enquanto o acto gerador da espontaneidade. Na Guiné, o totalitarismo quer do presidente em exercício, assim como o das cúpulas militares, destruiriam e impediram o desenvolvimento de acção enquanto o movimento da espontaneidade e da liberdade.
Há pouco quando abordámos a questão da legitimidade da violência do Estado, falamos da questão da identidade da autoridade e do seu reconhecimento. Reconhecer esta autoridade significa explicitamente que vamos aceitar que em algum momento da nossa vida social seremos obrigados a perder a nossa liberdade negativa, isto é, aquela faculdade de poder estar e ser sem a coerção de terceiros. Ao reconhecer a legitimidade da violência do Estado, nós convidamo-lo a proteger-nos dos outros e, consequentemente, também a proteger estes outros de nós mesmos. Acontece que no panorama do discurso e da acção na política guineense, o Estado não é visto como protector nem pelo cidadão e nem pelo burocrata que exerce as funções políticas, uma vez que o burocrata, o político, aproveitou o desaparecimento da espontaneidade para instaurar e legitimar a sua autoridade através de um ontem eterno de que nos fala Max Weber. No caso guineense, o ontem não deveria ser chamado ou tratado por eterno, já que o poder político vigente no país tem um começo; porém o poder foi ganhando uma eternidade legítima através da imposição dos senhores da guerra e de acordo com as novas regras da democracia eleitoral. A legitimidade dos senhores da guerra cresce ainda mais quando todos de uma forma ou outra interiorizam a consciência do medo de enfrentar estes senhores. Deste modo, quanto mais cresce o medo, mais o cidadão se disponibiliza a obedecer, em outras palavras, mais ele aumenta a legitimidade dos políticos. E, segundo Weber, esta obediência e esta legitimidade já não dependem só da lei, ou seja, os homens não o fazem porque está prescrito na lei, mas porque eles acreditam no chefe independentemente da exterioridade da lei ou do medo do não comprimento desta mesma lei. Esta crença acentua também a perda do verdadeiro significado da esfera pública.
Como diz Arendt, “O que impediu que a polis violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez considerar sagrados os limites que cercavam cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o facto de que, sem ser dono da sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse”[19]. Em África e em particular, na Guiné-Bissau, a política do pós independência actuou exactamente ao contrário daquilo que acabamos de ler na perspectiva de Hannah Arendt. Violou o espaço privado dos seus cidadãos de cada vez que cobrava os impostos à noite. Com esta actuação, o Estado fundiu num só domínio a esfera familiar e a esfera pública e consequentemente, desvirtualizou a verdadeira imagem daquilo que deveriam ser actuação política e a acção política. Com isso, o Estado para além de ter desvirtualizado o conceito da política e da acção política, também roubou ao indivíduo o seu acto pré-político da libertação, isto é, despojou o chefe da família do seu poder de exercer a violência sobre os outros membros da família. Se por um lado esta desestruturação da família contribuiu para reforçar o poder do Estado, por outro, também contribuiu para o seu próprio descrédito, já que ao desmembrar o núcleo familiar, ele actuou directamente contra a mais sagrada concepção da tradição. E aqui mais uma vez podemos citar Arendt para reforçar e esclarecer a nossa posição:
“Sem a vitória sobre as necessidades da vida na família, nem a vida nem a “boa vida” é possível; a política, porém, nunca visa a manutenção da vida. No que se refere aos membros da polis, a vida no lar existe em função da “boa vida” na polis”[20].
A política nunca visa a manutenção da vida, o que no contesto africano, representa um tremendo atentado contra a tradição e contra o costume. E mais, o facto da vida no lar existir em função da boa vida na polis é também uma actuação contra a política no seu confronto com a concepção familiar africana. A polis guineense não apresenta uma imagem da “boa vida”, ela é o reflexo da paralisia de todo o país. Uma estrutura política ou militar desmembrada e, cujo desmembramento se faz sentir directamente nos lares através das lutas pela tentativa de emancipação; um confronto directo entre o patriarca e os outros membros da família, particularmente os membros do género feminino. Pois uma vez que o patriarca não tem poder de compra, o dinheiro que vai entrar para o rendimento da casa e da despesa familiar terá de ser fruto ou do trabalho doméstico da mulher ou do namoro/prostituição política e institucional da filha. Para o patriarca, esta situação é humilhante mas é uma realidade à qual ele está confinado pela nova realidade política. Preferir que os outros filhos não morram de fome ou revoltar-se contra aqueles que indubitavelmente dormem com a sua filha e provavelmente com a sua mulher? Esta é a dura realidade que a debandada política trouxe aos lares guineenses particularmente aqueles lares das cidades; e esta é também umas das razões para que a política seja desacredita no continente. De mesmo modo, a família que era vista antes como um dos rostos do despotismo é ela agora mesma absorvida pelo despotismo político e social e é justamente na sua condição de inferioridade que ela nunca deixa de rogar pragas aos políticos.
Assim, a actuação política do Estado é vista como um discurso da força em alternativa ao poder, isto é, ao poder tradicional, ao poder familiar. Mas apesar do uso da força do poder político, ele no fundo nunca conseguiu destruir cabalmente o poder moral e é justamente este resto do poder moral, um resto que não é negligenciável, que se recusa a identificar-se com a noção da política e da acção política. E este é um movimento desfavorável à acção e ao discurso político, já que a política enquanto força de comando não passa de um elemento da divisão distributiva, ao passo que a força enquanto a consciência do Eu individual ou colectivo não é divisível. E é justamente aqui que assenta o problema guineense. A tentativa do poder em acabar com tudo e a recusa da força em deixar que tudo se acabe. Este duelo entre o poder e a força reforça a consciência do risco do que pode implicar qualquer participação na vida pública e política do país. E aqui mais uma vez podermos citar Arendt para reforçar a nossa posição:
“Quem quer que ingressasse na esfera política deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade sinal inconfundível do servilismo”[21].
Na Guiné-Bissau, passa-se o mesmo. A política é assim vista como o domínio reservado aos corajosos, uma espécie de vocação à riqueza material e consequentemente à morte trágica. O facto dos políticos africanos fazerem da política a sua fonte de rendimento, transformou ainda mais a função política num lobi muito restrito em que não basta só pertencer a classe dos “senhores de guerra” mas aqueles que fizeram nomes entre os “senhores de guerra” ou entre os influentes sociais e daqueles que se identificam como os verdadeiros filhos de terra. Como diz Weber, “Há dois princípios pelos quais alguém pode fazer da política a sua vocação: viver para a ‘política’ ou viver da ‘política’…Quem vive ‘para’ a política faz dela a sua vida, num sentido interior. Desfruta a posse pura e simples do poder que exerce, ou alimenta seu equilíbrio interior, seu sentimento íntimo, pela consciência de que sua vida tem sentido a serviço de uma ‘causa’… A distinção, no caso, refere-se a um aspecto muito mais substancial da questão, ou seja, o económico. Quem luta para fazer da política uma fonte de renda permanente, vive ‘da’ política como uma vocação, ao passo que quem não age assim vive ‘para’ a política”[22].
O espaço político guineense para além de ser um espaço característico dos “senhores de guerra” também é um espaço onde as pessoas vivem da política e consequentemente vivem em função do rendimento económico, o que contribui amplamente para ignorar a importância do discurso na política, transformando assim a acção do rendimento num movimento que justifica toda a violência material da política. É por isso que na Guiné, “Quem deseja dedicar-se à política, e especialmente à política como vocação, tem de compreender esses paradoxos éticos. Deve saber que é responsável pelo que vier a ser sob o impacto de tais paradoxos. Repito: tal pessoa se coloca à mercê de forças diabólicas envoltas na violência”[23] em que o único limite possível da acção violenta é de sentir-se como o político não só respeitado mas sobretudo temido maquiavelicamente, já que não há encontro entre a parresía política e a parresía ética.
2. A autoridade
A interpretação da palavra autoridade é uma peça-chave para a integração não só da democracia como também para o respeito do poder político e das instituições em África. Compreender a função da autoridade, conduziria a colaborar com ela sem medo e sem preconceito negativo em relação à ela.
Entre os muitos desafios que o país enfrenta, a questão de integração do princípio de autoridade pelo cidadão governado é uma questão básica imprescindível para que qualquer governo possa construir um diálogo produtivo não só com as massas como também com a elite. Só a autoridade credível pode contribuir para a compatibilidade da liberdade política com a tradição. A falta de compreensão da palavra autoridade, primeiro, por quem exerce o poder, e depois por parte de quem obedece ao poder, tem criado graves crises institucionais ao país, relegando-o quase a um plano de ingovernabilidade.
A Guiné-Bissau continua a ser talvez o país mais pré-político do nosso tempo, já que os laços familiares continuam a ter uma importância capital, apesar de uma clara evidência da deterioração no seu confronto com a vontade de ocidentalizar-se. Mas a principal dificuldade para o entendimento do termo autoridade na Guiné tem a ver com, o facto de ela estar muitas vezes associada a violência e a corrupção. A imagem que chaga as pessoas quando se lhes fala de autoridade, não é uma imagem de protecção mas sim de punição e de um certo abuso de poder e de não ter limite para a esfera privado do cidadão. E, nisto também consiste a incompatibilidade com a liberdade política.
BIBLIOGRAFIA
Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2001.
Platão, Protágoras. In diálogos I, Editorial Gredos, 1982, Madrid.
Hannah Arendt, A promessa da Política, Relógio d’Água, 2007, Lisboa.
Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, Relógio d’Água, 2006, Lisboa.
Montesquieu, O espírito das Leis, Martins Fontes, 2000, São Paulo.
Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores, 1963, Rio de Janeiro.
Sófocles, Tragédia, Antígona. Editorial Gredos, 1983, Madrid.
[1] Na Guiné-Bissau, a divergência entre os guineenses e os cabo-verdianos reside sobretudo no facto da “inveja” que os guineenses tinham destes últimos, por um lado, por serem na sua maioria muito mais instruídos que os guineenses e por outro, por serem supostamente amigos dos portugueses. O cabo-verdiano era capaz de produzir um “discurso” e o guineense não, e isso molestava o guineense, o que no fundo levava sempre o conflito entre os dois, uma vez que, contra a racionalidade do cabo-verdiano, o guineense recorria à acção; primeiro para sanar o seu complexo de inferioridade e segundo, para humilhar a racionalidade cabo-verdiana. Quem tiver mais interesse neste assunto poderá fazer uma analises hermeneutica do golpe de Estado de 1980.
[2] Hannah Arendt, A promessa da política; p. 108, Relógio d’Água, Junho de 2007 Lisboa.
[3] Opus. Cit. P. 12.
[4] Protágoras, 317a-b.
[5] Protágoras, 337a-e.
[6] Protágoras, 324a, b-e.
[7] Protágoras, 324e, 325a.
[8] Ministro árabe.
[9] O espírito das Leis, II, 5; III, 9.
[10] Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, pg 119.
[11] A República, 449d.
[12] A República, 463b.
[13] Antígona, 367-8.
[14] Antígona, 744-5.
[15] A República, 450b.
[16] A República, 450d; 451a.
[17] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar Editores, pg 98, 6a edição, 1963. Rio de Janeiro.
[18] Opus. Cit. Pg 98.
[19] Hannah Arendt, A condição Humana, pg 44. Relógio d’Água, Junho de 2001 Lisboa
[20] Opus. Cit. Pg. 51.
[21] Opus. Cit. Pg 50.
[22] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores,Pg 105.
[23] Opus. Cit. pg 150.
O objetivo de esta intervenção (no Encontro de ética e filosofia política organizada pelo IEP, UL, UN, Universidade de Coimbra e a Universidade do Minho em Braga no dia 19 de Junho) é de tentar explicar a origem da instabilidade política e militar na Guiné. Tentar saber o que está na base das constantes tragédias políticas que o pais tem vindo a oferecer ao mundo. Depois da descoberta da origem do conflito, queremos também discutir se, a tradição guineense é ou não compatível com a teoria da liberdade política. Estas duas perspectivas conduzem-nos ao momento grego da fundação da política e do político. Compreender o conflito político, significa compreender e pôr em sintonia a palavra enquanto instrumento da racionalidade e a violência enquanto instrumento apolítico e antípoda da racionalidade (cfr. o julgamento de Orestes). A Guiné é neste momento um laboratório onde este estudo pode ser feito com mais claridade recorrendo-se aos gregos.
Na Grécia antiga, o uso da palavra era muito privilegiado, era um convite à racionalidade, era um convite ao pensamento. A estrutura educativa montada visava sobretudo permitir ao cidadão político familiarizar-se com os vários tipos de discursos. Valorizava-se muito a habilidade e a apreensão do discurso persuasivo, convencer a través da palavra. Na Guiné-Bissau, o caminho fez-se no inverso. A palavra enquanto elemento gerador do discurso tem servido para reprimir e para desencorajar todo o tipo de acto que implicasse a racionalidade, ou a expressão de quem não opina “como eu”[1]. Como em todas as sociedades pobres, o brilho intelectual pode ser um motivo de perseguição e de isolamento. Este temor da represália social chaga a fazer muitas vezes nas aldeias, que algumas pessoas prefiram retardar o seu desenvolvimento escolar e intelectual para não perder o contacto dos amigos e para não cortar o laço social da comunidade. O desenvolvimento das habilidades pessoais da racionalidade pode ser muito perigoso, já que isto implicaria estar numa posição de destaque e numa diferenciação em relação aos demais. Em outras palavras, isso leva a pessoa em causa a ser o único estranho no meio de uma comunidade homogênea. O que contrasta com o conceito do discurso e da racionalidade na Grécia antiga; segundo Hannah Arendt, em “A promessa da política”, a actividade mais importante de uma vida livre deslocava-se de acção para o discurso, dos actos livres para as palavras livres. Havia, portanto, uma diferença de princípios entre a ideia de acção e a ideia do discurso. No entanto, Arendt lembra-nos que esta diferença foi sendo ganha progressivamente, uma vez que na época de Homero e mesmo antes dele, havia uma fusão entre o discurso e a acção, isto é, “o autor dos grandes feitos tem de ser sempre e ao mesmo tempo o autor de grandes palavras – não só porque são necessárias as grandes palavras para acompanhar e explicar os grande feitos que de outro modo cairiam na mudez do esquecimento, mas também porque o próprio discurso era considerado desde o início uma forma de acção”.[2] Arendt toma como exemplo da suplantação da acção no discurso, o desespero de Platão perante a condenação de Sócrates.
A persuasão falhada que poderia constituir um elemento essencial para inocentar Sócrates deixou Platão chocado. O choque de Platão segundo Arendt, consistia no facto de Sócrates não ter podido persuadir a Peitho, a deusa da persuasão, “uma vez que era em persuadir a peithein que consistia a forma especificamente política do discurso, e uma vez que os atenienses se orgulhavam, ao contrário dos bárbaros, de conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma do discurso e não da compulsão, consideravam a retórica a arte da persuasão, a mais elevada e verdadeira forma de arte política”[3]. Em Protágoras[4], Platão mostra como a arte do discurso pode ser libertadora e como também esta arte é distinta do pensamento das massas, já que implica a imparcialidade, isto através de uma verdadeira compreensão do sentido da palavra neutralidade. Platão mostra ainda nesta passagem de Protágoras, como um bom discurso nunca nos pode deixar indiferentes e, sobretudo, como um verdadeiro discurso se distancia não só de uma disputa física, como também de uma possível vulgaridade[5]. Na vida política guineense, a palavra e o discurso nunca foram usados como um elemento de articulação ou ainda como arte de persuadir o outro através de uma via racional. A palavra sempre foi usada como a conclusão de uma ordem, de um comando, “o chefe quer isto assim”; deste modo, a palavra é vista como a personificação do poder do chefe não só no domínio público como também no domínio privado. O jogo da persuasão tem sido circunscrito à acção violenta, de modo que este hábito também foi arrastado para a política, contrariando assim o conceito da retórica ou do discurso na Grécia antiga em que figurava como a verdadeira forma da arte política.
O desenvolvimento da retórica ou do discurso permite planear o castigo, a punição não como a forma de libertar-se de um delito, mas como a forma de aprendizagem com vista a garantir um boa convivência na cidade, ou na política[6]. Segundo Platão, a boa convivência na política ou na cidade não dependerá necessariamente da coerção punitiva, mas antes da consciência da obrigatoriedade da justiça, isto é, a justiça deve ser o ponto de união na cidade dos diferentes dons dos cidadãos, já que é não só a principal virtude política, como também humana[7]. No caso da política guineense, isto levanta um problema, já que a personificação do poder dos chefes exige, de uma certa forma, a aniquilação dos dons não só dos membros do governo como também do cidadão particular. Aqui o princípio do governo é um principio despótico dissimulado numa democracia eleitoral; há necessidade de estabelecer um vizir[8], já que o “soberano” não pode fazer tudo, e esta necessidade transforma-se numa lei fundamental cobrindo assim a ignorância política do “déspota”, através da instauração do medo que se executa nas acções comandadas pelo “déspota”, e neste caso concreto, no presidente sufragado por uma democracia eleitoral[9]. Aqui outra vez encontramos uma assimetria entre a política no pensamento clássico grego e a política na Guiné da democracia eleitoral; para Platão como para Aristóteles, o tirano era visto como “um lobo em forma de gente”, uma vez que o seu poder para coagir era inviável para os fins políticos, “o seu poder de coação era incompatível não só com a liberdade dos outros, mas também com a sua própria liberdade. Onde quer que ele governasse só existia um tipo de relação, a do senhor com os seus escravos”[10] e isto para os gregos não era o exercício de liberdade, já que para eles a coação é um acto puramente anti-político.
Para Platão, toda a afirmação política correta implica uma anterior discussão[11] o que por sua vez impede que o governante se sinta como salvador e protetor e sobretudo que considere o povo como o seu escravo[12]. Isso marca de uma certa forma o limite do espaço público e favorece a salvaguarda dos direitos do indivíduo, basta olhar para o confronto entre Hémon e o seu pai Creonte em defesa de Antígona, um choque entre a consciência individual e o bem estar público protagonizado por Antígona e o rei Creonte[13]; também neste confronto, Hémon procura mostrar ao seu pai que ninguém pode desempenhar bem a sua função incorrendo no desrespeito da justiça e que qualquer ofensa da justiça divina implica consequentemente a desvalorização do direito do indivíduo[14]. Tudo isso mostra como os antigos concebiam a vida política e o discurso como o acto mais marcante da vida política e do cidadão. Assim, uma comunidade política justa era aquela onde o discurso e a discussão eram feitos constantemente para o bem da polis[15]. Como o fim da política é facultar uma vida boa aos seus cidadãos, também o objectivo do discurso é proporcionar a verdade aos ouvintes é por isso indispensável que quem tem este oficio o faça com honestidade, sabendo que se não o faz pode levar muita gente na inverdade e pode comprometer a boa vida da cidade e da política[16]. No caso guineense, o discurso é feito para repostar ou para dramatizar algo.
Ora, numa outra perspectiva, no olhar de Max Weber, podemos considerar ou interpretar esta verdadeira forma de arte política de que Hannah Arendt nos fala como uma vocação à função política.
O conceito da política que Weber nos oferece, é um conceito que inclui o uso da força. A política como vocação para usar a força, em outras palavras, a política como a expressão do Estado. Se é verdade, diz Weber que outras pessoas ou instituições podem usar a força física, não é menos verdade no conceito do Estado moderno, que estas pessoas só podem usar esta força física se o Estado o permitir[17], já que ele é a única fonte de direito autorizada a usar a violência contra o indivíduo para o próprio bem deste indivíduo.
Isso levanta por um lado a questão da identidade da autoridade e o reconhecimento da própria autoridade e por outro a legitimidade em lutar para garantir e conservar o poder. Ora como diz Weber, “Quem participa activamente na política luta pelo poder, quer como um meio de servir a outros objectivos, ideais ou egoístas, quer como o ‘poder pelo poder’, ou seja, a fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pelo poder”[18]. Isso implica muitas vezes a invasão da esfera pública à esfera privada e isso pode ainda implicar num sentido abusivo, transformar a vida do cidadão numa coisa do Estado. A invasão da privacidade, isto é, da esfera privada, começa com a limitação da liberdade de opinião e com a liquidação da acção enquanto o acto gerador da espontaneidade. Na Guiné, o totalitarismo quer do presidente em exercício, assim como o das cúpulas militares, destruiriam e impediram o desenvolvimento de acção enquanto o movimento da espontaneidade e da liberdade.
Há pouco quando abordámos a questão da legitimidade da violência do Estado, falamos da questão da identidade da autoridade e do seu reconhecimento. Reconhecer esta autoridade significa explicitamente que vamos aceitar que em algum momento da nossa vida social seremos obrigados a perder a nossa liberdade negativa, isto é, aquela faculdade de poder estar e ser sem a coerção de terceiros. Ao reconhecer a legitimidade da violência do Estado, nós convidamo-lo a proteger-nos dos outros e, consequentemente, também a proteger estes outros de nós mesmos. Acontece que no panorama do discurso e da acção na política guineense, o Estado não é visto como protector nem pelo cidadão e nem pelo burocrata que exerce as funções políticas, uma vez que o burocrata, o político, aproveitou o desaparecimento da espontaneidade para instaurar e legitimar a sua autoridade através de um ontem eterno de que nos fala Max Weber. No caso guineense, o ontem não deveria ser chamado ou tratado por eterno, já que o poder político vigente no país tem um começo; porém o poder foi ganhando uma eternidade legítima através da imposição dos senhores da guerra e de acordo com as novas regras da democracia eleitoral. A legitimidade dos senhores da guerra cresce ainda mais quando todos de uma forma ou outra interiorizam a consciência do medo de enfrentar estes senhores. Deste modo, quanto mais cresce o medo, mais o cidadão se disponibiliza a obedecer, em outras palavras, mais ele aumenta a legitimidade dos políticos. E, segundo Weber, esta obediência e esta legitimidade já não dependem só da lei, ou seja, os homens não o fazem porque está prescrito na lei, mas porque eles acreditam no chefe independentemente da exterioridade da lei ou do medo do não comprimento desta mesma lei. Esta crença acentua também a perda do verdadeiro significado da esfera pública.
Como diz Arendt, “O que impediu que a polis violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez considerar sagrados os limites que cercavam cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o facto de que, sem ser dono da sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse”[19]. Em África e em particular, na Guiné-Bissau, a política do pós independência actuou exactamente ao contrário daquilo que acabamos de ler na perspectiva de Hannah Arendt. Violou o espaço privado dos seus cidadãos de cada vez que cobrava os impostos à noite. Com esta actuação, o Estado fundiu num só domínio a esfera familiar e a esfera pública e consequentemente, desvirtualizou a verdadeira imagem daquilo que deveriam ser actuação política e a acção política. Com isso, o Estado para além de ter desvirtualizado o conceito da política e da acção política, também roubou ao indivíduo o seu acto pré-político da libertação, isto é, despojou o chefe da família do seu poder de exercer a violência sobre os outros membros da família. Se por um lado esta desestruturação da família contribuiu para reforçar o poder do Estado, por outro, também contribuiu para o seu próprio descrédito, já que ao desmembrar o núcleo familiar, ele actuou directamente contra a mais sagrada concepção da tradição. E aqui mais uma vez podemos citar Arendt para reforçar e esclarecer a nossa posição:
“Sem a vitória sobre as necessidades da vida na família, nem a vida nem a “boa vida” é possível; a política, porém, nunca visa a manutenção da vida. No que se refere aos membros da polis, a vida no lar existe em função da “boa vida” na polis”[20].
A política nunca visa a manutenção da vida, o que no contesto africano, representa um tremendo atentado contra a tradição e contra o costume. E mais, o facto da vida no lar existir em função da boa vida na polis é também uma actuação contra a política no seu confronto com a concepção familiar africana. A polis guineense não apresenta uma imagem da “boa vida”, ela é o reflexo da paralisia de todo o país. Uma estrutura política ou militar desmembrada e, cujo desmembramento se faz sentir directamente nos lares através das lutas pela tentativa de emancipação; um confronto directo entre o patriarca e os outros membros da família, particularmente os membros do género feminino. Pois uma vez que o patriarca não tem poder de compra, o dinheiro que vai entrar para o rendimento da casa e da despesa familiar terá de ser fruto ou do trabalho doméstico da mulher ou do namoro/prostituição política e institucional da filha. Para o patriarca, esta situação é humilhante mas é uma realidade à qual ele está confinado pela nova realidade política. Preferir que os outros filhos não morram de fome ou revoltar-se contra aqueles que indubitavelmente dormem com a sua filha e provavelmente com a sua mulher? Esta é a dura realidade que a debandada política trouxe aos lares guineenses particularmente aqueles lares das cidades; e esta é também umas das razões para que a política seja desacredita no continente. De mesmo modo, a família que era vista antes como um dos rostos do despotismo é ela agora mesma absorvida pelo despotismo político e social e é justamente na sua condição de inferioridade que ela nunca deixa de rogar pragas aos políticos.
Assim, a actuação política do Estado é vista como um discurso da força em alternativa ao poder, isto é, ao poder tradicional, ao poder familiar. Mas apesar do uso da força do poder político, ele no fundo nunca conseguiu destruir cabalmente o poder moral e é justamente este resto do poder moral, um resto que não é negligenciável, que se recusa a identificar-se com a noção da política e da acção política. E este é um movimento desfavorável à acção e ao discurso político, já que a política enquanto força de comando não passa de um elemento da divisão distributiva, ao passo que a força enquanto a consciência do Eu individual ou colectivo não é divisível. E é justamente aqui que assenta o problema guineense. A tentativa do poder em acabar com tudo e a recusa da força em deixar que tudo se acabe. Este duelo entre o poder e a força reforça a consciência do risco do que pode implicar qualquer participação na vida pública e política do país. E aqui mais uma vez podermos citar Arendt para reforçar a nossa posição:
“Quem quer que ingressasse na esfera política deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade sinal inconfundível do servilismo”[21].
Na Guiné-Bissau, passa-se o mesmo. A política é assim vista como o domínio reservado aos corajosos, uma espécie de vocação à riqueza material e consequentemente à morte trágica. O facto dos políticos africanos fazerem da política a sua fonte de rendimento, transformou ainda mais a função política num lobi muito restrito em que não basta só pertencer a classe dos “senhores de guerra” mas aqueles que fizeram nomes entre os “senhores de guerra” ou entre os influentes sociais e daqueles que se identificam como os verdadeiros filhos de terra. Como diz Weber, “Há dois princípios pelos quais alguém pode fazer da política a sua vocação: viver para a ‘política’ ou viver da ‘política’…Quem vive ‘para’ a política faz dela a sua vida, num sentido interior. Desfruta a posse pura e simples do poder que exerce, ou alimenta seu equilíbrio interior, seu sentimento íntimo, pela consciência de que sua vida tem sentido a serviço de uma ‘causa’… A distinção, no caso, refere-se a um aspecto muito mais substancial da questão, ou seja, o económico. Quem luta para fazer da política uma fonte de renda permanente, vive ‘da’ política como uma vocação, ao passo que quem não age assim vive ‘para’ a política”[22].
O espaço político guineense para além de ser um espaço característico dos “senhores de guerra” também é um espaço onde as pessoas vivem da política e consequentemente vivem em função do rendimento económico, o que contribui amplamente para ignorar a importância do discurso na política, transformando assim a acção do rendimento num movimento que justifica toda a violência material da política. É por isso que na Guiné, “Quem deseja dedicar-se à política, e especialmente à política como vocação, tem de compreender esses paradoxos éticos. Deve saber que é responsável pelo que vier a ser sob o impacto de tais paradoxos. Repito: tal pessoa se coloca à mercê de forças diabólicas envoltas na violência”[23] em que o único limite possível da acção violenta é de sentir-se como o político não só respeitado mas sobretudo temido maquiavelicamente, já que não há encontro entre a parresía política e a parresía ética.
2. A autoridade
A interpretação da palavra autoridade é uma peça-chave para a integração não só da democracia como também para o respeito do poder político e das instituições em África. Compreender a função da autoridade, conduziria a colaborar com ela sem medo e sem preconceito negativo em relação à ela.
Entre os muitos desafios que o país enfrenta, a questão de integração do princípio de autoridade pelo cidadão governado é uma questão básica imprescindível para que qualquer governo possa construir um diálogo produtivo não só com as massas como também com a elite. Só a autoridade credível pode contribuir para a compatibilidade da liberdade política com a tradição. A falta de compreensão da palavra autoridade, primeiro, por quem exerce o poder, e depois por parte de quem obedece ao poder, tem criado graves crises institucionais ao país, relegando-o quase a um plano de ingovernabilidade.
A Guiné-Bissau continua a ser talvez o país mais pré-político do nosso tempo, já que os laços familiares continuam a ter uma importância capital, apesar de uma clara evidência da deterioração no seu confronto com a vontade de ocidentalizar-se. Mas a principal dificuldade para o entendimento do termo autoridade na Guiné tem a ver com, o facto de ela estar muitas vezes associada a violência e a corrupção. A imagem que chaga as pessoas quando se lhes fala de autoridade, não é uma imagem de protecção mas sim de punição e de um certo abuso de poder e de não ter limite para a esfera privado do cidadão. E, nisto também consiste a incompatibilidade com a liberdade política.
BIBLIOGRAFIA
Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2001.
Platão, Protágoras. In diálogos I, Editorial Gredos, 1982, Madrid.
Hannah Arendt, A promessa da Política, Relógio d’Água, 2007, Lisboa.
Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, Relógio d’Água, 2006, Lisboa.
Montesquieu, O espírito das Leis, Martins Fontes, 2000, São Paulo.
Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores, 1963, Rio de Janeiro.
Sófocles, Tragédia, Antígona. Editorial Gredos, 1983, Madrid.
[1] Na Guiné-Bissau, a divergência entre os guineenses e os cabo-verdianos reside sobretudo no facto da “inveja” que os guineenses tinham destes últimos, por um lado, por serem na sua maioria muito mais instruídos que os guineenses e por outro, por serem supostamente amigos dos portugueses. O cabo-verdiano era capaz de produzir um “discurso” e o guineense não, e isso molestava o guineense, o que no fundo levava sempre o conflito entre os dois, uma vez que, contra a racionalidade do cabo-verdiano, o guineense recorria à acção; primeiro para sanar o seu complexo de inferioridade e segundo, para humilhar a racionalidade cabo-verdiana. Quem tiver mais interesse neste assunto poderá fazer uma analises hermeneutica do golpe de Estado de 1980.
[2] Hannah Arendt, A promessa da política; p. 108, Relógio d’Água, Junho de 2007 Lisboa.
[3] Opus. Cit. P. 12.
[4] Protágoras, 317a-b.
[5] Protágoras, 337a-e.
[6] Protágoras, 324a, b-e.
[7] Protágoras, 324e, 325a.
[8] Ministro árabe.
[9] O espírito das Leis, II, 5; III, 9.
[10] Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, pg 119.
[11] A República, 449d.
[12] A República, 463b.
[13] Antígona, 367-8.
[14] Antígona, 744-5.
[15] A República, 450b.
[16] A República, 450d; 451a.
[17] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar Editores, pg 98, 6a edição, 1963. Rio de Janeiro.
[18] Opus. Cit. Pg 98.
[19] Hannah Arendt, A condição Humana, pg 44. Relógio d’Água, Junho de 2001 Lisboa
[20] Opus. Cit. Pg. 51.
[21] Opus. Cit. Pg 50.
[22] Max Weber, Ensaios de Sociologia, Zahar editores,Pg 105.
[23] Opus. Cit. pg 150.
1 comentário:
Apesar de tardiamente, não queria deixar de "aplaudir de pé" esta intervenção e agradeceer o prazer que me proporcionou na leitura deste texto.
Djodji (o primeiro)
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