sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

ANGOLA: O ENSINO EM DEBATE(por david boio)

Como qualquer análise, proponho-me numa primeira parte identificar os problemas que o nosso ensino superior enfrenta. Penso numa próxima intervenção apresentar as possíveis soluções, que já se encontram nas entrelinhas dos problemas.
1. Julgo que os problemas, felizmente, já estão quase todos identificados, mas importa, ainda assim, apresentá-los e fazer algumas considerações;

Muitos dos problemas que o nosso país enfrenta tem a ver essencialmente com a definição dos conceitos. Nós, em regra não dominamos a definição dos conceitos que utilizamos no nosso quotidiano. Perguntamos a alguém para nos indicar uma clínica, e indica-nos um sítio onde encontramos alguém que nos diz que cura doenças, num espaço que tem uns quartos e umas camas. Pedimos para nos indicarem um infantário para o nosso filho, indicam-nos uma casa onde encontramos uma “tia” que trata dos miúdos; pedimos um hotel, e indicam-nos um estabelecimento com quartos e camas.
Por isso, para começarmos a resolver os nossos problemas temos que começar a definir os conceitos. Afinal de contas o que é uma universidade? Cfr: http://dererummundi.blogspot.com/2007/04/o-que-uma-universidade.html

Sem grandes lucubrações filosóficas, julgo que podemos definir a universidade como sendo uma “instituição de ensino superior que compreende um conjunto de faculdades ou escolas para a especialização profissional e científica, e tem por função principal garantir a conservação e o progresso nos diversos ramos do conhecimento, pelo ensino e pela pesquisa”. Ou em termos mais conçisos, podemos encarar a universidade,

“como um espaço de liberdade que visa a transmissão e a produção do conhecimento”

Sendo assim, para que uma instituição de ensino seja considerada como sendo uma universidade, tem de comportar um conjunto de elementos motivadores da transmissão e do progresso do conhecimento, nomeadamente, um quadro docente capacitando, condiçoes de pesquisa científica (bibliotecas e centros de investigação) e estudantes ávidos pelo saber. São esses os três elementos que constituem o núcleo de uma universidade e é da fragilidade dos mesmos que resultam os problemas que o nosso ensino superior enfrenta.
Vamos começar pelo terceiro elemento, isto é, existência de estudantes ávidos pelo saber.
Esse ponto remete-nos pela seguinte constatação, que foi invocada pela maioria das pessoas que apresentaram os seus comentários ao testemunho apresentado: o fundamento dos problemas que o ensino superior enfrenta, está muito antes do mesmo, ou seja, não está no topo da hierarquia do sistema de ensino, mas na sua base. Por outras palavras, se quisermos encontrar a génese do problema do nosso ensino superior ou de qualquer outro, então temos que partir dos problemas que o ensino primário enfrenta.
O grosso de alunos que a universidade recebe, é proveniente de um ensino de base altamente deficitário, em que grande parte dos alunos sentou nas latas de leite (embora também dessas latas tenham saído os nossos principais quadros do país, mas são situações muitos especiais), eram e são ensinados, por professores que na verdade não o são. Um sistema imbuído num ambiente de muita corrupção (tenho uma amiga professora de uma escola primária, que o director da sua escola chega a rasgar a pauta apresentada pelos professores, porque os pais de um aluno que havia chumbado ofereceram uma grade de CUCA), isto é, o ensino primário, apesar de alguns esforços que têm sido feitos por quem de direito. Se o professor desses alunos, em princípio nunca leu um livro, de modo algum incentivará os seus alunos ao gosto pela leitura.
Neste contexto,“continuaremos a ter universitários cegos e sem capacidade que o seu nível exige. Nesse caso não estou a falar de génios, mas sim de alunos intermédios e com capacidade intelectual no limite da média”, “a questão vem de baixo! Vem das escolas primárias! E essas têm um fortíssimo elo de ligação ao ensino médio. - As escolas de formação de professores do ensino básico…Este é o elo mais fraco de toda a cadeia e é onde deve começar a ser feita a limpeza dos formadores e a selecção dos alunos. Sem resolveres esta questão a educação em Angola não vai a lado nenhum. A base da pirâmide começa com os professores da instrução primária. Ou sabem e ensinam bem ou não sabem e dão cabo de todo o sistema. Como não sabem isso não tem solução à vista”.

Vamos agora analisar o primeiro elemento definidor do conceito de universidade, um quadro de docente capacitado.
Não há universidade sem professores, mais, não há universidades dignas desse nome, sem professores dignos desse título.
Tal como referiu Max Weber, referindo-se aos jovens que se propunham à profissão académica, (ver a ciência como vocação)[1] “um académico deve capacitar-se de que a tarefa que o espera tem um duplo rosto…deve ser qualificado não só como douto, mas também como professor, e as duas qualidades não coincidem de todo. Uma pessoa pode ser um sábio absolutamente eminente e um professor espantosamente mau”. Todas as pessoas que andaram ou andam numa universidade testemunham essa evidência de Weber.
Os dois pressupostos da exigência de Weber, está muito distante da nossa realidade universitária.
Alguém já se deu o trabalho de saber quantos doutos em direito é que o nosso país possui. Por outras palavras, quantos doutorados em direitos possuímos. Agora pensemos em quantos cursos de direito o país possui. Já pensamos em quantos doutorados em economia/gestão possuímos, e imaginemos quantos cursos de economia/gestão o nosso mercado oferece. Se pensarmos apenas, no primeiro requisito de Weber para se auferir da qualidade de um académico, isto é, ser um douto, as nossas universidades deixam muito a desejar. Quantos de nós, é que acabados de terminar as nossas licenciaturas, começamos a dar aulas assumindo as responsabilidades de um douto, isto é, conceber os programas das disciplinas, a metodologia de aulas e da avaliação, sem termos sido acompanhados por nenhum professor?
Quanto ao segundo requisito, a situação é para nós muito grave. Quantas pessoas é que andam na universidade a dar aulas, que são realmente professores? Isto é, pessoas, que sendo doutos, se dedicam com vocação e dedicação exclusiva ou quase exclusiva à actividade docente? Somos, possivelmente, dos únicos países no mundo que as pessoas decidem ingressar para actividade docente com objectivo de criar riqueza, ao passo que o professor sempre esperou ser reconhecido pelas suas qualidades científicas e de transmissor e produtor de conhecimentos. Em regra, os nossos professores se assemelham aos nossos biscateiros da construção civil, que quando solicitamos os seus serviços, ao perguntarmos o que eles sabem fazer, respondem com toda à-vontade do mundo: sei fazer tudo: canalizador, pintor, pedreiro, electricista, etc. como dizia o outro os nossos, professores, salvo raras excepções, são na sua maioria “especialistas da generalidade”.
O mais grave, é que os professores que estão entrar no sistema universitário são produtos da calamidade do ensino superior actual, e outros provenientes do mesmo sistema são os professores que suportam o ensino de básico e médio.
Relativamente ao segundo elemento, condiçoes de pesquisa científica (bibliotecas e centros de investigação) a situação não é menos grave.
Como director e empreededor de um projecto livreiro, tenho andado pelas bibliotecas de todas as universidades do país. Confesso que ainda não encontrei uma universidade com uma biblioteca adequada à imagem de uma instituição superior, com excepção da biblioteca da universidade Católica de Luanda e da universidade ó Óscar Ribas, que minimamente possuem condições minimas. Nas outras universidades, a biblioteca constiui um fantasma. Este facto é gritante, porque as grandes universidades também vêm-se pela imagem das suas bibliotecas. Quem visitar por exemplo a universidade catolica portuguesa em lisboa, a primeira imagem que salta à vista é do edificio da sua biblioteca. Caso ainda mais flagrante, nas universidades de países como a Africa do Sul, França, EUA, Inglaterra, Brasil e outros. No nosso caso, ao visitarmos uma universidade, dificilmente nos damos conta da biblioteca. Geralmente, entramos numa sala com umas pratileiras que comportam um número infimo de livros, e nos dizem que é a biblioteca.
Não se percebe como é que se fazem universidade sem ter a preocupação adequada às bibliotecas. Alguém pode indagar, como é que o Ministério da Educação ou um órgao competente do governo assiste impávido à essa situação. A resposta está na ausência de bibliotecas nos estabelecimentos do ensino superior público. Pessoalmente, além da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, não conheço nenhuma outra faculdade dessa Universidade que apresente uma biblioteca minimamente aceitável, inclusive a maioria delas simplesmente não possui uma biblioteca.
Tudo leva a crer que essa situação, pelo menos relativamente às faculdades da UAN, mudará nos proximos tempos.
As direcçoes das universidades privadas, tentam justificar a ausência de um acervo bibliografico minimo, por causa dos custos dos livros. O que é uma afronta à nossa inteligência. Alguém já fez um cálculo aproximado da facturação mensal de uma universidade que tenha 5000 alunos, com propina mensal média de 250USD? Estamos a falar de 1.250.000 USD. Se atribuirmos, de forma optimista, 50% dessa facturaçao aos custos variaveis e fixos que a universidade tem que suportar, estamos a falar de margens mensal na ordem de 500.000USD, mais coisas menos coisas, o que representa uma margem anual de cerca de 6.000.000USD, é irmos a europa e ver quantas universidades apresentam essa margem anual.
Quanto a existência de centros de investigação, é algo para esquecer. Pelo que consta do meu conhecimento, a Universidade Católica é a única que possui um centro de investigação, em muito resultado do esforço do Professor Alves da Rocha e da sua equipa. O restante das universidades, a começar pela UAN, as suas produções científicas resumem-se nas jornadas científicas anuais que realizam. Mas quem as frequenta, sabe bem que produtos científicos resultam dessas jornadas, que mais não passam de ciclos de conferências. Também não sei como esperar produção científica de professores “turbos”, embora existam reconhecidamente professores com interesse pela investigação científica, cujo interesse é frustrado pelos cálculos erradamente economicistas dos proprietários das universidades.
Todo esse cenário é em muito resultado da natureza das pessoas que detêm as universidades. Na sua maioria, são uns meros “candogueiros” de ocasião, que estão convencidos que não é possível conciliar rendimentos económicos com o ensino de rigor e qualidade. O facto é que, as universidades mais caras do mundo, também são as mais reputadas. Um reitor da grande Universidade de Harvard ao ser questionado pelo facto da sua universidade ser das mais caras do mundo, sugeriu uma aposta na ignorância, que ao seu ver a médio e longo prazo sai sempre muito mais caro.
Grosso modo, os proprietários dos nossos projectos universitários, não têm sensibilidade académica, e mesmo quando confiam a reitoria da universidade a tipos com cultura académica, a verdade é que não deixam de se imiscuir nas questões de gestão académica e pedagógica. Sendo assim, ser reitor nessas universidades é uma tarefa inglória. Acontece, tal como nas equipas de futebol, em que os proprietários das mesmas, tendem a condicionar as opções técnicas do treinador.
Julgo ter apresentado, de forma analítica, os principais problemas que o nosso ensino superior apresenta, na segunda parte da nossa reflexão, apresentarei o que considero como as principais soluções do mesmo.
[1] Nota do editor, (Inácio Valentim), nesta obra Weber se vê surpreendido pela falta de crítica de jovens candidatos ao ensino, quando ele os perguntava: tu estarias disposto a ver um tipo que não sabe nada passar a tua frente e mesmo assim, continuarias no ensino? Os candidatos diziam que sim. Isso chocou a Weber porque começou a perceber que os candidatos não estavam ai porque tinham vocação, mas porque era para eles mais um trabalho, mais um lugar de ganha-pão. Dai segundo ele, os motivos para deterioração do ensino. Poderíamos sem problema alinhar esta obra aos diálogos platónicos da juventude, a guerra aos sofistas: Hípias Menor, Hípias Maior, Protágoras, Gorgias, Menexeno e Eutidemo. Mas de momento vamos contentar de ver esta análise à luz do texto de Weber.

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