quinta-feira, 19 de março de 2009

DESILUSÃO E HUMILHAÇÃO

- O tempo acabou, não há partida que não tenha um fim. Nós somos os filhos do começo, do eterno começo, mas a nossa genealogia só é completa quando tocamos o fim. Hoje portanto tu sentes-te em casa, em família, porque tocaste no finito, não é porém um finito fechado, ou isolado do mundo imanente. Não, não é assim; ele não tem nada de transcendente, a sua única transcendência é o facto de alguns pensarem que somos uns alucinados divinos, talvez porque vivemos no tempo e assumimos a temporalidade dos seres limitados e imperfeitos.
- Por favor Bruno, se eu precisasse de uma homilia, estava à porta de uma Igreja qualquer. – disse Cadi irritadíssimo. Mas infelizmente para ela, porque o Bruno não a deu ouvidos e continuou passivamente.
- Dizem que somos gente perdida porque somos nostálgicos. Fazem tais afirmações simplesmente porque recusamos a qualidade de copistas natos, visto que para nós o essencial não é copiar do outro, mas copiar o que é indispensável para o desenvolvimento e para a riqueza cultural. – Não sei porque é que eu vim cá.
- Eu sabia. Sabia que ia ter que ouvir isso. Estás a insinuar que a antigamente é que era bom, não. A mesma cantiga, a mesma de sempre. – respirou fundo e concluiu. – Valha-me deus.
- Eu nunca disse que a era dos tugas era uma era de ouro ou da magna perfeição; aliás nunca o poderia ter dito, porque esta era levou a maior parte dos meus amigos e familiares não só os meus, mas também de muita gente. Contudo, teria preferido continuar nessa era.
- Ou seja, estás a legitimar essa era – insurgiu-se Cadi abatida por aquilo que acabara de ouvir sair da boca do Bruno.
- Sim e não, por uma simples razão.
- Então, di-la lá - pediu Okika.
- Quando eles cá estiveram. - continuou tio Bruno, - agiam como estrangeiros. Sabiam que estavam numa terra estrangeira, invadida, ocupada, ainda que pintassem de legitimidade essa ocupação. Havia muito sofrimento, muita injustiça, muita falta de liberdade; mas tínhamos a comida e não sabíamos o que era passar fome, não tínhamos a triste experiência duma refeição diária.
- Isto é antigo, senhor Bruno – respondeu Okika. - Também Moisés ouviu este murmúrio no deserto, com o seu povo.
- Tu nous a fait sortir de l’Egypte ou nous avions du pain avec du lait et miel pour nous faire mourir au désert (Tu fizeste-nos sair do Egipto onde tínhamos leite e mel para nos fazer morrer no deserto). - Talmudiou Cadi.
- Eu não discuto a antiguidade ou a conscidência dos factos, discuto o facto. O que importa é que isso está a acontecer aqui e exactamente neste momento, e já agora, falando de Moisés, talvez não saibas que ele sempre se sentiu israelita. Vós porém não podeis dizer o mesmo, pois não vos comportais como guineenses, estais cegos e surdos diante do sofrimento dos vossos irmãos. Escandam a liberdade, a pátria e o progresso e quando chega a hora da execução invertem as palavras. Já não se diz a liberdade, a pátria e o progresso, mas o policiamento, a propriedade e a manipulação das massas de uma forma desrespeitadora. Será para isso que perdemos muitos homens? será isso o objectivo da independência? Respondam e não olheis para mim com este ar de cordeiro inofensivo diante do matadouro. Por ventura o conceito da liberdade mudou sem que nós o saibamos, ou é simplesmente a ética da manipulação?
PS: Um trecho do livro "O pensador de Canapé" (inácio valentim), EDIÇÃO DE IPAD

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