quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

BURKE E O CONSERVADORISMO

Em Burke, o termo conservadorismo define-se em oposição ao imobilismo, isto é, a tendência estaticista com uma certa alergia à mudança. Burke não recusa liminarmente fazer qualquer tipo de mudança. Para ele, as mudanças só devem acontecer para acentuar o bem já existente. Por isso, ao tratar o conservadorismo, vai fazer ligação entre a conservação e a reforma, ou seja, vai propor que seja conservado o que merece ser conservado e reformado o que merece ser reformado.
É neste âmbito que ele dirá que qualquer actividade política faz-se de acordo com as circunstâncias, em outras palavras, toda actividade política é uma actividade situacional. Por isso, sendo a política uma actividade situacional, ao estadista é exigido que tenha muita humildade para poder captar as necessidades da mudança que brotam por vezes da contingência. Assim, na interpretação de Burke, o processo de mudança é diferente de processo de destruição. Para ele a revolução francesa era o protótipo dos processos politicamente destrutivos. Os revolucionários não estavam a mudar nada
A mudança, neste caso, a transformação, tem sempre em conta a antiguidade das coisas e a sua prescription, isto é, a presunção necessária para saber que se alguma instituição existiu até esta altura é porque deve haver razão necessária para que ela exista. Isto não quer dizer que o que é velho é bom, mas que o que é velho deve ser conservado pela sua sabedoria e a sua utilidade.
Burke recusa assim a ideia de liberdade reclamada pelos revolucionários franceses, uma vez que segundo ele, esta mesma liberdade não passa de uma desordem e consequentemente de uma inversão dos papeis sociais.

Je crois que la liberté des autres nations n’est pas plus pour moi que pour eux un objet de jalousie; mais je ne peux me mettre en avant, ni distribuer la louange ni le blâme à rien de ce qui a rapport aux actions humaines et aux intérêts publics sur le simple aperçu d’un objet dénué de tous ces rapports, dans toute la nudité et dans tout l’isolément d’une abstraction métaphysique[1].

Estas palavras reflectem e revelam bem o sentimento que Burke tinha do conceito da liberdade reclamada pelos revolucionários. Para ele, uma liberdade que rompe com a salvaguarda do interesse público e da tradição não pode aos seus olhos merecer reconhecimento. É curioso que também neste trecho Burke deixe sub entendido o facto de que a verdadeira liberdade nunca pode estar ou ser incompatível com as circunstâncias da mudança.
A ideia que ele deixa aqui, é de que não se pode ser livre sem responsabilidade e sem ser responsabilizado pelos desastres cometidos. Condena também o facto de os revolucionários franceses quererem comparar a sua revolta com a de 1688 e acusa-os de terem eles mesmos deturpado o princípio da revolução de 1688 e de terem feito do princípio deturpado o verdadeiro princípio da revolução.

Les messieurs de la Société de la Révolution n’ont vu dans celle de 1688 que la déviation de la constitution; et ils ont pris la déviation du principe pour le principe lui-même. Ils prennent peu garde aux conséquences évidentes de leur doctrine, qua qu’ils eussent dû apercevoir qu’elle ne laissait aucune authenticité positive à un grand nombre des institutions positives de ce royaume[2].

Mais uma vez Burke volta a frisar a questão das instituições, isto é, a questão do respeito pelas instituições, por outras palavras, a questão da continuidade. A mudança, mesmo sendo situacional, tem de ter sempre um paradigma, uma referência. Numa outra passagem ele destaca o facto de o princípio de conservadorismo e o princípio da mudança terem em conjunto moldado a sociedade inglesa na altura da restauração e da revolução.

Elle conserva ces anciennes parties exactement comme elles étaient; et elle fit en sorte que la partie renouvelée pût s’y adapter[3].

Assim, para Burke, quem não consegue mudar, peca pontualmente porque não conseguiu mudar uma coisa concreta. Pelo contrário, quem não conseguiu conservar peca em tudo e perde tudo uma vez que as mudanças implicam quase sempre o desrespeito pelas antigas instituições.
Em geral, estas dificuldades acontecem porque algumas pessoas desvalorizam a força e o papel das circunstâncias.

Les circonstances que n’est rien pour quelques personnes, sont pourtant, dans la réalité, ce qui donne à un principe de politique sa couleur distinctive et son véritable caractère. Ce sont elles qui rendent un plan civil et politique, utile ou nuisible au genre humain[4].

As circunstâncias são por isso para Burke uma espécie de eixo controlador dos movimentos sociais e dos movimentos das mudanças. As coisas tornam-se políticas ou civis de acordo com as circunstâncias e de acordo com abordagem que se fez da circunstância, é por isso que é bom ter muito discernimento para poder avaliar o que é bom do que é mau. Com isso, Burke recusa também que se felicite os revolucionários, pois diz ele, que o princípio exige que seja respeitado a ordem estabelecida pela natureza.
O conceito de estado de natureza de Burke diverge com aquele de Hobbes, uma vez que ele não toma por “estado de natureza” aquele movimento cíclico violento na tentativa de sobrevivência, mas sim o respeito pela lei estabelecida e pela antiguidade das coisas, isto é, o respeito pelo longo desenvolvimento histórico, dito de outra forma, a natureza é igual à história[5].
Com isso, ele põe também em causa a teoria da desobediência, pois diz ele, é difícil dizer a partir de que momento a obediência deve cessar e a partir de que momento a resistência deve começar, pois este processo não pode ser determinado por um único acto, daí a dificuldade de falar de direito à desobediência ou da resistência. Pelas mesmas razões não se pode falar do direito à destituição dos governantes pela má conduta. Para ele, nenhum governo do mundo poderia aguentar perante uma acusação assim tão vaga. Aqui Burke parece ter ido buscar a critica de Hobbes ao conceito da tirania em Aristóteles. Contrariamente a Aristóteles, Hobbes não acreditava que um governo popular não pode ser tirano. Dizia, num Estado bem ordenado não são os homens que governam, mas sim as leis.
Não esconde o descontentamento que tem pela revolução. Invoca o desrespeito pela moral, pela boa governação, pela ordem pública e o desrespeito pela religião. Segundo ele, na ausência destas características não se pode falar de liberdade, já que a liberdade pressupõe antes de tudo uma coordenação do corpo social. a manutenção do corpo social através do vínculo da tradição, que justamente por não serem expressos, tinham mais força que qualquer outra ideia revolucionária ou política
O coservadorismo de Burke é também confrontado com a questão da legitimidade do rei. Como dizer que o rei é legal se ele não for eleito, se a sua designação não vem de uma escolha popular? Burke vai respondendo dizendo que as circunstâncias actuais não podem mudar o costume o habito, até porque a legitimidade da realeza está contida nos documentos constitucionais. Invoca a jurisprudência para demonstrar a legitimidade do rei baseando-se no facto de o exercício do poder do rei se ter sempre dado bem apesar de algumas limitações que segundo ele, fazem parte da própria natureza humana. Por isso, deve-se ter em conta a experiência e valorizá-la.
As mudanças implicam entrar numa zona desconhecida e implicam experimentar uma novidade que nem sempre é boa, ou seja, a mudança pode ser um risco desnecessário, é por isso ,diz Burke:

Le peuple d’Anglaterre ne singera pas des modes dont’il n’a jamais essayé ; et il ne retournera pas à celles qu’il a trouvé malheureusement à l’épreuve. Il regarde l’hérédité légale de la sucession au trône comme un des droits de la nation et non pas comme un de ses griefs[6].

Burke alega que a experiência tem demonstrado que a sucessão hereditária sempre conseguiu garantir segurança aos ingleses. Por isso, para ele, defender a ideia de eleição para o trono da Inglaterra não passa de uma amalgama constitucional que pode não trazer nada de bom para a própria Inglaterra.
Assim, para ele, a questão das eleições para o trono é uma questão moral, antes de ser uma questão política, já que na sua opinião por exemplo, a câmara dos pares, (la chambre des paires) não tem poder para dissolver a câmara dos comuns e muito menos dissolver a si mesma ou de recusar cumprir com as suas obrigações. É por isso que para ele, a questão moral passa pela continuidade da hereditariedade, isto é, pelo respeito da regra já existente.
A ideia de Burke é que há duas partes contratantes no que diz respeito à questão da realeza: por um lado está o rei e por outro está o povo. As duas partes estão unidas pelo vinculo do contrato aqual são obrigadas a cumprir respeitosamente. É por isso, que não há necessidade de eleições, pois a legitimidade do rei reside neste pacto constituicional entre o rei e os seus súbditos.
Assim, o grande problema de Burke, é o horror que ele tem pelo abstracto. Já em relação à revolução americana, também se mostrou muito céptico para com a liberdade abstracta[7], embora muito menos que em relação à revolução francesa. Recusa portanto a ideia de querer nivelar tudo ao mesmo plano. Esta igualização das condições de que Tocqueville nos fala. Para Burke, esta ideia gera uma autodestruição política e constitucional. Para evitar que isso aconteça, Burke propõe que se reabilite os preconceitos, uma vez que segundo ele, contribuem para a protecção da liberdade.
Embora não tenha negado a força da razão individual, nega contudo que tenha a grandeza que o espírito do século o atribuiu. Segundo Hannah Arendt, o ódio de Burke pelos revolucionários residia sobre tudo no facto de eles se terem preocupado mais com os fidalgos de que com as instituições e isso contribuiu muito para que ele orientasse o seu conservadorismo numa esfera situacional.
Naturalmente, os revolucionários que aparentemente defendiam entre outras, a ideia do liberalismo de Locke, não poderiam desaproveitar a ideia do mestre para se tornarem crianças adultas. Assim a revolução é para eles a emancipação, a passagem para a fase adulta, a fase de cidadania. Uma passagem que souberam transformar numa espécie de religião universal, segundo Tocqueville, ao colocarem o homem no centro de toda movimentação revolucionário.
Burke criticará também este conceito de homem que os revolucionários apresentam ou defendem, já que não só não respeitam o homem como também não valorizam a experiência do passado. Outros críticos da revolução francesa como John S. Mill invocarão o papel da experiência como um toque constante de alarma que não deve desfazer-se em peças desconexas.
Burke criticava sobretudo a imaturidade de igualitarismo e a sua insustentabilidade. E, de facto, o tempo não tardou em demonstrar que com a revolução francesa se abriram as portas através dos dogmas igualitaristas a uma política “legítima” de repressão social, uma vez que o fio condutor dos dogmas revolucionário era substituir a desigualdade pela igualdade sem mais.


[1] De la Révolution en France, pg 29.
[2] De la Révolution en France, pg 44.
[3] De la Révolution en France, pg 43
[4] De la Révolution en France, pg 29.
[5] Jean-Jacques Chevallier e Yves Guchet, As Grandes Obras Políticas, pg 196.
[6] De la Révolution en France, pg 47.
[7] Jean- Jacques Chevallier e Yves Guchet, As grandes Obras Políticas de Maquavel à Actualidade, pg 193.

2 comentários:

Anónimo disse...

Puto,
Face a perspectiva e às críticas de Burke aos revolucionarários franceses e ao igualitarismo de Tocqueville, qual seria a leitura a sua leitura das independências africanas?

Inácio Valentim disse...

Olá,
que confusão!!! Antes de tudo, Burke não critica em nenhum momento o igualitarismo de Tocqueville, aliás, Tocqueville fala de igualização das condições e não de igualitarismo. Esta igualização de condições é também apresentada por Tocqueville como un síntoma da doença democrática, ja que contem inveja, ciumes...Portanto, Burke não poderia em nenhum momento estar a criticar a Tocqueville, porque de uma certa forma, os dois partilham o cepticismo em relação à revolução francesa. Para eles a tendência de querer nivelar tudo e todos ao mesmo nível (passa pleunasmo), é uma ideia de auto-destruição política. Para Burke não estava em causa os direitos individuais dos revolucionários, mas sim os direitos políticos, a partilha de poder, a autoridade para conduzir os assuntos de Estado, e isto era impensável para Burke concedê-los aos revolucionários. De mesma maneira seria não só injusto, como também especulativo interpretar as independências africanas a partir do pensamento de Burke. Em limite os africanos teriam que conseguir suas independências através de emancipação, esta seria para Burke a rota para romper com o conservadorismo estando dentro do conservadorismo. E, lembro-te que quando Burke escreve o seu texto, ainda se duvidava se o africano era ou não uma pessoa, se tinha ou não uma alma. A Libéria que foi um país de translado das dificuldades americanas para áfrica, foi criado quase no último quartel do século XIX, ou seja, 100 anos depois do pensamento de Burke.
Se por independências africanas queres dizer a defesa dos direitos humanos, então saiba que Burke certamente seria a favor (desde que na realidade sejam considerados humanos). Lembro-te também que Burke defendeu os direitos individuais dos colonos americanos, o que de facto surpreendeu o proprio parlamento inglês do seu tempo.